A casamenteira
O carro funerário cruzava a estrada lentamente. Um grupo de pessoas seguia- o
serenamente, sem choro nem drama, apenas o silêncio a reinar. No Lar de idosos onde
Joana passara os últimos anos, várias senhoras acercaram- se da varanda para
verem passar o cortejo fúnebre…
– A minha mãe deve estar ali, no funeral, ela vai aos funerais todos –
comentava uma das senhoras que deveria rondar os noventa anos… e aproximava
-se da parede para tentar descobrir a mãe, cada vez mais invisível, presente
apenas no seu universo imaginário que agora se sobrepunha à cruel realidade.
Noventa e dois anos no reino dos vivos ditam as leis de um cortejo fúnebre
reduzido. Os mais próximos já teriam partido. Os outros, os mais novos,
pertenciam a outros mundos, a outras gerações…Joana vivera os últimos anos
num tempo além do tempo, alimentada por um baú de recordações: nunca casara,
mas nunca ninguém fizera tantos casamentos como ela. Preparara bodas infinitas,
bolos e doces sem fim. Seu era o reino das festas, das promessas de "
viverem felizes para sempre" como nos contos de fadas. Talvez, por isso,
nunca tivesse querido casar, os contos de fadas eram para os outros, como se a
vida fosse uma interminável história de amor. Os outros tinham a ilusão de encontrar
a " outra metade", enquanto ela queria a realidade, agarrava o real
entre os dedos como os fiapos das claras em castelo… castelos brancos doces
que edificara ao longo dos tempos. E a música, a dança, as partidas aos noivos,
a emoção, as bebedeiras, as esperanças de felicidade vã que se esfumavam depois
no doroso do tempo, tudo vibrava ao seu redor como se fosse a maestrina de uma
grande e inusitada sinfonia. Sinfonia também branca de purezas virginais por
achar ou ocultar.
Mas de repente, o baú da memória ficou vazio e deixou de se reconhecer. Quando,
limpas as teias do tempo, brilhou o fundo do baú, exibindo o seu vazio
infinito, tudo deixou de fazer sentido. Joana tomou uma decisão: queria
morrer. Começou a recusar a comida, a iludir as funcionárias acerca da toma dos
medicamentos, que atirava para o lixo assim que elas viravam as costas. E a
morte veio, escalando os degraus dos dias, lançando devagar, as suas garras
negras por sobre uma impessoal e triste cama de hospital.
E agora, sorridente por ter controlado a vida e a morte, Joana irá talvez
planear outros matrimónios, outros bolos e outras iguarias em reinos de luz e
mistério, além de qualquer baú vazio de memórias.
No horizonte, numa nuvem de poeira, o carro funerário dissipa-se rumo a sete
palmos de terra – Terra feita de açúcar, ovos, leite e mel.
Dora Nunes Gago