O cinema de João Botelho recua no tempo, avançando com a música de Fausto


joao lopes
2 Nov 2017 23:51

E se fazer história fosse… inventar a história? A pergunta envolve uma perturbação, tingida de ironia — mas então fazer história não é, justamente, procurar o conhecimento, não inventá-lo? Digamos que a pergunta adquire outra (e mais interessante ressonância) se a formularmos no território específico do cinema e, sobretudo, se nos lembrarmos que fazer história não é (sublinho: não é) transcrever o que quer que seja. Porquê? Porque a apropriação dos factos históricos se faz sempre através de algum sistema de linguagens que, em última instância, definem a nossa posição no mundo.

No caso de "Peregrinação", João Botelho arriscou — e arriscou muito — para partilhar connosco a ideia de que a história também se pode fazer por música. Literalmente: o relato histórico de Fernão Mendes Pinto, evocando as suas aventuras pelo planeta Terra, no século XVI, integra canções de Fausto, do lendário álbum "Por Este Rio Acima" (1982), agora refeitas e, de alguma maneira, reinventadas por Luís Bragança Gil e Daniel Bernardes. A história diz-se, revive-se, encena-se, reencena-se e… canta-se — fazer história é, assim, desafiar os limites das linguagens históricas dominantes.

O risco começa nas próprias limitações de meios. Escusado será dizer que este relato épico seria outra coisa se contasse com um orçamento típico de uma superprodução gerada no espaço anglo-saxónico, com o patrocínio de Hollywood… Mas Botelho é suficientemente inteligente e pragmático para não fazer o seu filme como uma lamentação. Bem pelo contrário: trata-se de celebrar a memória multifacetada de Fernão Mendes Pinto (interpretado por Cláudio da Silva em postura anti-psicológica), tratando-a como matéria de vinhetas teatrais e musicadas — como quem inventa um irónico teatro de marionetas capazes de reflectir a grandeza esquecida dos portugueses.

É verdade: "Peregrinação" é um filme genuinamente patriótico, num tempo em que o niilismo (televisvo, antes do mais) todos os dias nos empurra para concebermos o nosso país — e, em particular, a nossa história — como uma colecção de anedotas mais ou menos deprimentes. Sensível às muitas e, por vezes, doloras contradições da nossa história, Botelho faz um filme em que a epopeia e a coragem podem coexistir com o desencanto e a derrota. Dito de outro modo: este é um passado que sentimos como visceralmente presente.

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