Na mansão de Malmkrog: cenas de uma sociedade hiper-estratificada


joao lopes
17 Dez 2020 22:10

O ano tem sido difícil para ver e dar a ver cinema… E, no entanto, embora isso não resolva nenhum problema prático ou económico, muito menos sanitário, 2020 está recheado de filmes realmente excepcionais. Entenda-se, à letra: filmes que resistem à banalidade das normas, à preguiça do pensamento e ao infantilismo do marketing dominante. "Malmkrog", do romeno Cristi Puiu, é um desses filmes, além do mais confirmando que, desde que ganhou a secção "Un Certain Regard" (Cannes/2005) com "A Morte do Sr. Lazarescu", ele é uma das vozes principais do cinema europeu.

Tendo como base "Os Três Diálogos", publicação póstuma do filósofo russo Vladimir Solovyov (1853-1900), Puiu encena o encontro de um grupo de personagens da elite social e política de finais do século XIX. Reunem-se numa mansão de Malmkrog, na região da Transilvância, num ritual cujo formalismo vai sendo minado pela emergência de pontos de vista realmente muito diferentes sobre Deus e os homens, o peso da religião, as nuances da política e as evidências irrecusáveis da guerra.



Dir-se-á que um dos trunfos maiores de "Malmkrog" é a sua capacidade de expor ideias e clivagens que, embora enraizadas em tensões muito concretas daquela época, ecoam, ponto por ponto, no nosso presente. Sem dúvida — e afigura-se óbvio que esse terá sido um ponto motivador para o trabalho de Puiu. Em todo o caso, não simplifiquemos: não se trata de "juntar" personagens para reduzi-las a meros locutores de ideologias ou discursos filosóficos, mas sim de as observar num espaço/tempo em que, afinal, vivem como factores dominantes dos circuitos de poder — de todas as formas de poder.

Os modos sosfisticados de dizer (quase sempre em francês), a ocupação teatral da casa, a clara demarcação dos espaços dos senhores e das regras de circulação dos criados, tudo isso integra a mise en scène de Puiu de modo a que apetece chamar dialéctico. Dito de outro modo: descobrimos que a naturalidade dos comportamentos decorre, afinal, de um edifício social hiper-estratificado. Ou ainda: que as significações das palavras e os gestos dos corpos são sempre, em última instância, eminentemente políticos. Coisa rara no cinema corrente dos nossos dias. Rara e preciosa.

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