Dick Johnson filmado pela filha: só se morre duas vezes...


joao lopes
25 Fev 2021 23:44

Um dos efeitos mais curiosos do "boom" do documentário que, pelo menos simbolicamente, foi fortemente impulsionado por "Fahrenheit 9/11", de Michael Moore (Palma de Ouro em Cannes/2004), é a progressiva diluição de fronteiras entre a visão documental e outros registos narrativos. Aí está o exemplo motivador de "Dick Johnson Is Dead" [Netflix], um genuíno documento cinematográfico capaz de integrar inesperadas e desconcertantes componentes de comédia.

Há uma motivação pedagógica e, de alguma maneira, catártica para tal estrutura. Acontece que Dick Johnson, pai da realizadora Kirsten Johnson, sofre de demência. Não "está morto" (como diz, ironicamente, o título original), mas nem ele nem a filha alimentam ilusões sobre os crescentes e irreversíveis sinais da doença — o que, enfim, abre a possibilidade cinematográfica de celebrar a vida… encenando a morte.

Assistimos, assim, a uma série de momentos bizarros, pontuados pelo absurdo do burlesco, em que o próprio Dick Johnson (por vezes substituído por um duplo) encena a sua própria morte… "ma non troppo". Em jogo está, afinal, esse peculiar poder do cinema que faz com que o testemunho de uma vida possa integrar o pensamento da sua própria dissolução.
Com serenidade e humor, o trabalho de Kirsten Johnson serve, assim, de resistência aos modelos (televisivos) de encenação do envelhecimento que se esgotam em banais discursos de piedade. O impacto público de "Dick Johnson Is Dead" poderá vir a ser brevemente reforçado pelo facto de este ser um dos 15 títulos que integra a chamada "short list" da Academia de Hollywood para o Oscar de melhor documentário — desses 15, cinco chegarão às nomeações.

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