Al Pacino e Robert Deniro lideram o brilhantíssimo elenco de


joao lopes
27 Nov 2019 19:59

E eis que chegou o muito aguardado filme de Martin Scorsese, "O Irlandês", centrado nas relações entre Jimmy Hoffa (1913-1975), líder do sindicato dos camionistas dos EUA, e Frank Sheeran (1920-2003), misto de guarda-costas e conselheiro de Hoffa que, em boa verdade, estava ao serviço de um clã mafioso. Chegada paradoxal, sem dúvida: produzido pela plataforma de streaming Netflix, o filme não será visto nas salas de muito países (incluindo Portugal), estando apenas acessível na Net.

Aplicando uma banalidade da gíria mediática, apetece dizer que o filme "vale o que vale" (e vale muito!!!), independentemente dos atropelos da sua difusão. Seja como for, não podemos deixar de detectar aqui um sintoma perturbante da conjuntura em que hoje existem esses objectos tão peculiares e, em casos como este, tão fascinantes a que chamamos filmes: por um lado, não faz sentido menosprezar as muitas alternativas de acesso que o espaço digital criou (para o cinema e muitas outras linguagens, artísticas ou não); por outro lado, não há maneira de desmentir uma cândida evidência formal: Scorsese criou um objecto cuja magnitude apenas se cumpre no ecrã de uma sala escura.

Podemos repetir que "O Irlandês" é, na obra de Scorsese, mais um capítulo a inscrever nos "filmes-sobre-a-Mafia", a que também pertencem, por exemplo, "Goodfellas/Tudo Bons Rapazes" (1990) e "Casino" (1995). Sem dúvida, e tanto mais quanto tudo se passa, agora, numa América a viver a época convulsiva de John F. Kennedy na presidência do país, pontuada pelas suspeitas de ligações do clã Kennedy a algumas famílias "italianas" — nesta perspectiva, dir-se-ia que estamos perante uma crónica intimista, sobre as relações Hoffa/Sheeran, que não deixa de ser um imenso fresco histórico.

O certo é que qualquer noção de género acaba por se revelar insuficiente, porventura inadequada, para dar conta das singularidades de "O Irlandês". Tudo acontece, enfim, através do equilíbrio instável de um triângulo permanentemente atravessado por todas as ambiguidades que podem contaminar uma geometria humana tecida de fidelidades e traições. Os dois vértices principais desse triângulo são, obviamente, Hoffa e Sheeran, interpretados, respectivamente, por Al Pacino e Robert De Niro; a fechar a figura dramática surge o "secundário", mas absolutamente essencial, Russell Bufalino (1903-1994), a cargo de Joe Pesci, líder da família a que Sheeran está ligado.

Através dos três, dir-se-ia que "O Irlandês" desenha um espelho narrativo em que Scorsese e os seus actores contemplam as marcas cristalinas de um envelhecimento que liga as personagens aos próprios criadores do filme — recorde-se, a propósito, que De Niro e Pesci são habitués do universo do cineasta, enquanto Pacino surge pela primeira vez num filme de Scorsese. Dito de outro modo: estamos perante uma saga desde o primeiro momento pontuada pelas contradições do tempo que passa, ou melhor, pelo combate íntimo que leva cada um a procurar o seu próprio lugar na(s) história(s) que viveu.
A mise en scène de Scorsese distingue-se pela precisão com que as acções são descritas: em última instância, "O Irlandês" poderá definir-se como um labirinto de acções através das quais cada um, mesmo sem disso ter consciência, expõe a vulnerabilidade da sua própria existência — esta é uma narrativa sobre o pressentimento da morte.
* As declarações do próprio Scorsese sobre a gestação de "O Irlandês", no âmbito de uma sessão especial promovida pelo American Film Institute, podem servir de enquadramento exemplar dessa dimensão visceralmente afectiva do projecto.

Escusado será dizer que, para além da excelência dos actores (será que Pacino pode ganhar o seu segundo Oscar, 28 anos depois de "Perfume de Mulher"?…), tudo isto passa pela contribuição de gente tão talentosa como Steve Zaillian e Thelma Schoonmaker — ele construindo um argumento de espantosos ziguezagues temporais a partir do livro de Charles Brandt que serve de base ao filme; ela prolongando o subtil sentido de montagem que, há várias décadas, empresta às narrativas de Scorsese.
Por alguma razão, em tempos recentes, Scorsese tem tecido muitas e pedagógicas considerações sobre o esvaziamento do desejo de cinema proposto e, pior que isso, imposto pelas sagas da Marvel [entrevista com Peter Travers]. Acontece que há nele esse primitivismo de não abdicar do impulso original dos filmes para contar histórias, em vez de se limitarem a promover "parques de diversões" — "O Irlandês" é esse filme esplendorosamente antigo, quer dizer, na vanguarda do nosso presente.

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