David Byrne no meio dos seus músicos:


joao lopes
14 Dez 2020 0:56

Com ou sem pandemia, numa sala pública de cinema ou no recato do consumo caseiro, não é todos os dias que deparamos com um filme capaz de gerar aquela sensação, de uma só vez serena e eufórica, de que um filme não é apenas um "registo", uma "história", porventura uma "mensagem": um filme é um acontecimento único e irredutível, impossível de duplicar em qualquer outra linguagem — uma fatia de vida, sem dúvida; ou, como gostava de dizer Hitchcock, uma fatia de bolo.

"David Byrne’s American Utopia" é um desses objectos que nos reconcilia com uma ideia livre e festiva da prática cinematográfica. E, no entanto, trata-se "apenas" de dar a ver um concerto de David Byrne, assim chamado porque tem por base as canções do seu álbum "American Utopia" (2018) e a respectiva encenação num palco da Broadway… Spike Lee, o realizador, filmou esse concerto a partir de um valor que os seus filmes, de "Do the Right Thing" (1989) a "Da 5 Bloods" (2020), tão exemplarmente ilustram: a música vive, de uma só vez, da materialidade da sua performance e da energia simbólica que nela se pode conter ou relançar.
Lembremos o óbvio: Byrne é um dos artistas americanos que mais e melhor tem sabido trabalhar a sua arte como um exercício de abstracção que, paradoxalmente, nos convoca para pensarmos o nosso aqui e agora. Digamos, para simplificar, que a apoteose de palco que é "American Utopia" não exclui os sinais de uma pedagógica frieza crítica perante a actualidade da vida nos EUA. Exemplo simples: Byrne apresenta os seus músicos destacando os diversos países de que são originários e lembrando que os EUA muito devem aos imigrantes…
Não é preciso fazer um desenho para explicar a que realidade Byrne se está a referir… E, no entanto, seria infinitamente redutor tratar "American Utopia" — entenda-se: o trabalho criativo de Byrne e do seu incrível colectivo de músicos — como um banal "suporte" para fazer passar um discurso político. A visceral dimensão política do concerto enraiza-se na sua condição de "show": o palco renasce como afirmação de vida, logo como resistência a tudo o que possa contrariar essa afirmação e o sentimento utópico que, sensualmente, nela se transporta.
Dos telediscos que dirigiu para os Talking Heads ao filme "True Stories" (1986), que interpretou e realizou [trailer], Byrne sempre pensou o seu trabalho também através das imagens. Nessa medida, pode dizer-se (Byrne confirma), que "American Utopia" nasceu como espectáculo que continha o desejo de ser filmado!

Spike Lee compreendeu isso como ninguém. Assim, se "American Utopia", o concerto, evolui como um evento teatral de permanente reinvenção do seu próprio dispositivo cénico e cenográfico, "American Utopia", o filme, reencontra o gosto e o prazer de um espaço de puro entertainment, conseguindo aquilo que, ao longo das últimas décadas, vários tentaram sempre de forma limitada. A saber: refazer os prodígios de mise en scène do musical clássico de Hollywood, retomando a herança de Arthur Freed e todos aqueles que criaram um género de pura exaltação das matérias musicais, a começar pelo corpo humano.
Há, talvez, uma maneira "técnica" de resumir tudo isso. Em duas partes: primeiro, e para lá da excelência musical, a coreografia de Byrne e dos seus músicos (sem "playback", como ele faz questão em esclarecer) é, em si mesma, um esplendoroso acontecimento formal; depois, a visão de Spike Lee leva-o a colocar câmaras em todos os recantos de um palco de reduzidas dimensões, conseguindo uma vertiginosa narrativa visual que nada tem a ver com os clichés de qualquer linguagem televisiva, antes nos remete, ponto por ponto, para matrizes especificamente cinematográficas e, em particular, para modelos de encenação indissociáveis do musical de Hollywood.
"American Utopia" é um filme da HBO que cumpre uma breve carreira em sala. Nessa medida, poderá ser também pretexto para um enriquecimento do debate, em que tantas vezes nos bloqueamos, sobre a coexistência das salas clássicas e dos serviços de streaming. Esperemos que o debate continue, preservando a máxima diversidade do consumo do cinema.
Ainda assim, e embora seja politicamente incorrecto dizê-lo, vale a pena acrescentar que uma obra-prima como "American Utopia" — sem hesitação um dos acontecimentos nucleares do cinema em 2020 — pertence àquela classe de filmes que existem, e resistem, em qualquer ecrã.

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