joao lopes
3 Jan 2020 23:28

Face à estreia de "A Criança Zombie", a palavra poderá ser: maneirismo. Podemos mesmo enunciar uma espécie de axioma ético e estético: diz-me onde vês maneirismo, dir-te-ei como avalias as formas artísticas…


Isto para dizer que vivemos um tempo de dramática clivagem da visão do(s) maneirismo(s). Exemplo esclarecedor poderá ser o americano Terrence Malick, de quem se vai estrear, no dia 16, "Uma Vida Escondida" — para muitos, ele é o símbolo perfeito, porque perfeitamente decadente, do maneirista. Para mim, o maneirismo contemporâneo está no cinema de autores como o francês Bertrand Bonnello.
Lembremos apenas o exemplo de "Apollonide – Memórias de um Bordel (2011): se há em Bonnello o projecto de desafiar o espectador através de algum tipo de "surpresa" ou "choque", cedo se percebe que a única matéria que o interessa é a produção de um visual mais ou menos "bizarro" que conduza, de uma só vez, à exclusão de qualquer contextualização histórica e ao esvaziamento do trabalho narrativo — sempre à procura de uma moral redentora (?).
O que acontece em "A Criança Zombie" não é muito diferente. Convenhamos que o paralelismo inicial de duas épocas não deixa de ser interessante: de um lado, temos o Haiti de 1962, com um homem a renascer como zombie no interior do trabalho implacável das plantações de cana do açúcar; do outro, uma história da França contemporânea, centrada numa jovem estudante cujo passado familiar, no Haiti, se afigura pleno de assombramentos…

Filme de terror? Saga social? Parábola política? Interpretando os meios específicos do cinema como mero recurso para expor uma "tese", Bonnello sustenta uma espécie de naturalismo simbólico (maneirista, precisamente) que parece não procurar mais do que, na cena final, explicitar uma mensagem libertadora (?) sobre a crueldade do colonialismo…
As boas intenções de "A Criança Zombie" não parecem constituir razão suficiente para reduzir as suas personagens a marionetas que, no plano da dramaturgia, não chegam a existir de modo consistente. Apesar de tudo, os zombies merecem outra consideração. E se se tratava de filmar o invisível da dimensão humana, sugiro aos mais cépticos uma revisitação de algum outro universo — Malick, por exemplo.

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