Manoel de Oliveira em Cannes/2010: um genuíno reconhecimento internacional

3 Abr 2015 2:39

Manoel de Oliveira não é todo o cinema português, mas toda a história do cinema português passa por ele.

Estamos a falar, afinal, de um criador que, ao longo de mais de oito décadas — desde "Douro, Faina Fluvial" (1931) até "O Velho do Restelo" (2014) —, edificou um invulgar universo pessoal, ao mesmo tempo que marcava de forma indelével, por vezes como pioneiro, algumas das tendências marcantes da modernidade.
Daí que a obra de Oliveira, mesmo quando nos produz uma sensação de obstinada e coerente pesquisa, deva ser vista, percorrida e pensada como uma galeria de objectos muito diversos, por assim dizer, cada um deles desafiando as certezas dos outros. Os seus particularismos terão funcionado também, ironicamente, como o passaporte para o seu reconhecimento internacional, traduzido em honras tão especiais como os prémios honorários de Veneza (Leão de Ouro, 2004) ou Cannes (Palma de Ouro, 2008).
Ele é o cineasta o realismo poético, pré-neo-realismo, de "Aniki-Bobó" (1942). E também o documentarista que atrai a ficção através desse filme premonitório que é "Acto da Primavera" (1962). Ou ainda o retratista dos amores frustrados, indo desde as ambivalências da comédia conjugal, em "O Passado e o Presente" (1972), até à austeridade emocional de "Francisca" (1981).
Ele é, afinal, alguém que nunca desistiu de manter uma interrogação crítica sobre a identidade de Portugal, suas memórias e utopias — títulos como "Non ou a Vã Glória de Mandar" (1990), "O Quinto Império" (2004) ou "Cristóvão Colombo – O Enigma" (2007) são momentos exemplares dessa demanda.
Aqui ficam algumas recordações da imensidão, e também dos contrastes, da sua filmografia.


* DOURO, FAINA FLUVIAL (1931) —
É curioso que o primeiríssimo filme de Manoel de Oliveira, feito na época de transição do cinema mudo para o sonoro tenha, afinal, três versões: uma muda, precisamente, de 1931; outra de 1934, com música de Luiz de Freitas Branco; e uma terceira, remontada em 1994, com música de Emmanuel Nunes — de uma maneira ou de outra, estavam já aí duas componentes fulcrais do universo do cineasta: primeiro, o amor pela cidade do Porto, as suas personagens e os seus lugares; depois, um gosto pelo cinema como espaço experimental — musicalmente, poderíamos dizer: tema e variações.


* ANIKI-BÓBÓ (1942) —
Teresinha, Carlinhos, Eduardinho: são rostos e vozes de crianças, de novo nos cenários emblemáticos do Porto — com produção de António Lopes Ribeiro, Oliveira explorava os caminhos de um lirismo muito particular, ao mesmo tempo ingénuo nos pressupostos e sofisticado na linguagem. Estava-se em 1942 e costuma dizer-se que este é o filme “neo-realista” de Oliveira, mas convém não esquecer que o neo-realismo italiano, de facto, surgiu depois.


* ACTO DA PRIMAVERA (1962) —
O Verbo, isto é, o poder da palavra é vital no universo de Oliveira. Pode ser a palavra divina, mas é sempre a palavra tal como se enreda nas relações e com as relações humanas. É dessa fixação nos poderes do Verbo que nasce este filme singularíssimo na obra do cineasta e, em boa verdade, em toda a história do cinema português: uma representação da Paixão de Cristo pelos habitantes da aldeia da Curalha, de acordo com um texto herdado do séc. XVI — para Oliveira, trata-se de fazer um documento que se transfigura em panfleto moral sobre a possibilidade do apocalipse. Em termos históricos, "Acto da Primavera" estava na linha da frente do cinema europeu.


* O PASSADO E O PRESENTE (1972) —
Ironia e sarcasmo: em 1972, quando surgiu "O Passado e o Presente", os velhos do Restelo que o nosso cinema sempre teve acharam que era o fim artístico de Oliveira — e, num certo sentido, seria também o fim do cinema de autor à portuguesa. Pois bem, passadas todas estas décadas, vale a pena rir um pouco. Até porque "O Passado e o Presente", baseado na peça homónima de Vicente Sanches, é isso mesmo: uma genuína comédia — em cena estão os fantasmas conjugais e as aparências sociais. O cinema de Oliveira, é bom não esquecer, sempre existiu habitado por um humor muito especial.





* FRANCISCA (1981) —
“A alma é um vício” — é uma frase dita por Francisca no romance "Fanny Owen", de Agustina Bessa-Luís, frase que se transformou numa espécie de emblema, ético e estético, do cinema de Oliveira. Ao adaptar "Fanny Owen" no seu filme FRANCISCA, corria o ano de 1981, o cineasta ilustrava de forma exuberante algo que, afinal, estava disseminado pelos seus três filmes anteriores: "O Passado e o Presente", de 1972, segundo Vicente Sanches, "Benilde ou a Virgem Mãe", de 1975, a partir de uma peça de José Régio, e "Amor de Perdição", de 1979, o clássico de Camilo Castelo Branco — aliás, por alguma razão, depois de "Francisca", passaram todos esses filmes a ser conhecidos como a tetralogia dos amores frustrados. A inspiração no teatro e no romance decorre do primado da palavra, mas também do modo como a palavra expõe uma dimensão visceral da existência humana. Ou seja: tudo é teatro, vivemos entre as máscaras que usamos e os rostos que assumimos, tentando encontrar a transparência da alma — a alma, esse vício. Além do mais, pormenor nada secundário, "Francisca" é o filme que Oliveira dedica à memória do seu amigo, grande divulgador da cultura portuguesa, em especial durante a década de 60, que foi o vimaranense Joaquim Novais Teixeira.


* NON OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR (1990) —
As palavras de El-Rei D. Sebastião, antes da fatídica Batalha de Alcácer-Quibir, a 4 de Agosto de 1578, são o espelho da contradição mais antiga da história colectiva portuguesa: por um lado, uma vontade utópica de oferecer novos mundos ao mundo; por outro lado, em alguns momentos decisivos, a entrega dramática a um destino fatídico. Foi com este "Non" que Oliveira encenou Alcácer-Quibir. Mas não apenas a batalha — antes uma teia de referências históricas que parte do Portugal pós-25 de Abril, um Portugal que foi, por assim dizer, reconduzido às suas fronteiras originais. Do ponto de vista temático, é um objecto que faz a síntese da visão de Oliveira sobre as convulsões e contradições da história de Portugal — e também para a história, ficou como o mais caro filme português de sempre.


* O CONVENTO (1995) —
A lenda de Mefistófeles surge recontada por Luís Miguel Cintra e questionada por Catherine Deneuve… A partir de certa altura, a obra de Oliveira internacionaliza-se também internamente, de tal modo que o bailado das línguas — português, francês, inglês — passa a constituir uma espécie de sub-tema, perversamente incrustado no corpo narrativo do próprio filme. Aconteceu assim em "O Convento", com Deneuve e John Malkovich. Voltou a acontecer assim, dois anos mais tarde, em "Viagem ao Princípio do Mundo", derradeiro filme de um dos actores genuinamente lendários do cinema europeu: Marcello Mastroianni.





* PORTO DA MINHA INFÂNCIA (2001) —
Escutamos a voz de Manoel de Oliveira contemplando uma imagem da sua velha casa, agora destruída. E a voz de sua mulher, D. Maria Isabel, cantando a mágoa infinita da saudade. São duas vozes que transportam uma tristeza que, afinal, se faz alegria — alegria do cinema, alegria de refazer as memórias, reinventando-as através da magia própria de um filme. "Porto da Minha Infância" pode ser uma excelente porta de entrada no universo de Oliveira, sobretudo para quem nunca tenha visto um único dos seus filmes — é uma evocação sentida, na primeira pessoa; e é também, como o título o diz, uma vez mais, uma deambulação pela história da cidade do Porto; enfim, este é o mais "descritivo" dos documentários que consegue, sem esforço nem contradição, possuir as intensidades, e também o mistério, de uma verdadeira viagem através dos labirintos da alma humana.

João Lopes
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— Com estes e outros comentários, o legado de Manoel de Oliveira será objecto de uma edição especial de Cinemax a emitir na Antena 1, sexta-feira 3 abril (23h00) e domingo 5 de abril (21h00), e na Antena 3, sábado (10h00).
  • cinemaxeditor
  • 3 Abr 2015 2:39

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