Kristen Stewart interpretando Jean Seberg — transparência e mistério


joao lopes
23 Fev 2020 0:21

Estranha cegueira semiológica de alguns títulos portugueses: o filme "Seberg", sobre a actriz americana Jean Seberg (1938-1979) centra-se no período em que ela, em crescente e dramática vulnerabilidade psicológica, foi vigiada pelo FBI. Dito de outro modo: trata-se do retrato, pleno de comoção, de alguém que não sabe como se defender da invasão da sua privacidade… Ainda assim, foi-lhe acrescentado um subtítulo bélico, em tudo e por tudo alheio à personagem retratada: "Contra Todos os Inimigos".

Esta é, de facto, uma história em que a ingenuidade da protagonista se cruza com a sua militante defesa dos direitos dos afro-americanos, numa América (anos 60) marcada por muitas convulsões sociais e políticas. Depois de ter sido uma star muito precoce — graças a dois títulos dirigidos por Otto Preminger: "Santa Joana" (1957) e "Bom Dia, Tristeza" (1958) —, Seberg acabou por se transformar, ou ser transformada, em bode expiatório de uma nação com dificuldade em lidar com as suas contradições internas.
Dirigido por Benedict Andrews, a partir de um metódico argumento assinado por Joe Shrapnel e Anna Waterhouse, "Seberg" evita a solução fácil de reduzir a sua personagem central a uma vítima de um mundo de demónios. Assim, a complexidade emocional das suas vivências não exclui que alguém como Jack Solomon, um dos elementos do FBI que a vigia, seja encenado também como um ser humano que não se dilui numa abstracção simbólica ou psicológica.
Na composição de Seberg, Kristen Stewart consegue preservar um misto de transparência e mistério que não pode deixar de envolver as memórias cinéfilas da própria actriz, incluindo, claro, "À Bout de Souffle/O Acossado" (1959), o filme de Jean-Luc Godard que serviu de bandeira à Nova Vaga francesa.
E porque tais memórias existem num permanente ziguezague de imagens e pensamentos, vale a pena recordar Jean Seberg, ela própria, em "À Bout de Souffle", contracenando com Jean-Paul Belmondo, na emblemática cena dos Campo Elíseos em que apregoa o "New York Herald Tribune" — tempos passados, cinema sempre do presente.

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