Maria Flor e Graciano Dias: o mundo queirosiano reencenado por João Botelho


joao lopes
11 Set 2014 20:22

De que falamos quando falamos da "transposição" de um romance do séc. XIX para o cinema? Se nos ficarmos pelo lugar-comum televisivo, falamos da fabricação de cenários "parecidos" com a época e um guarda-roupa a "copiar" o que então se usava… Por alguma razão, os produtos feitos a partir desse dispositivo são, muitas vezes, meras derivações académicas de quem não tem, nunca teve, um ponto de vista sobre aquilo que filma.

João Botelho não é um cineasta submetido aos ditames das convenções televisivas. Daí que o seu filme "Os Maias", inspirado no romance homónimo de Eça de Queirós, seja um filme-filme. Que é como quem diz: uma recriação que confessa o seu artifício ("de ópera", como o próprio realizador gosta de dizer), trabalhando com cenários que não receiam expor o seu magnífico artifício (com telões pintados por João Queiroz), enfim, celebrando o fulgor — e também o humor — da prosa queirosiana.
Não se trata, portanto, de "fingir" que o séc. XIX está ao alcance de qualquer copismo cenográfico (triste ideia…), mas sim de proclamar que um filme, para mais do séc. XXI, pode ser um objecto que mede a distância que o separa da escrita original, nela descortinando os ecos que, afinal, lhe conferem uma actualíssima sensibilidade.
"Os Maias" resulta, assim, um exercício cinematográfico em que as máscaras sociais e políticas parecem reflectir as feridas interiores de um modo de ser português cuja actualidade simbólica não se desvaneceu. Nesta perspectiva, pode dizer-se que estamos perante um filme elaborado a partir de uma interrogação irónica. A saber: porque é que quanto mais mergulhamos no universo de Eça, mais nos sentimos expostos a um espelho do nosso presente?
O drama passional de Carlos da Maia e Maria Eduarda, com a desgraça familiar que arrasta, encontra uma excelente reconversão afectiva na sobriedade dos respectivos intérpretes — Graciano Dias e Maria Flor, respectivamente —, afinal confirmando que a mise en scène de Botelho se organiza a partir de uma desafio sistemático à formatação humana que as telenovelas impuseram. O elenco é, aliás, exemplarmente equilibrado — fica um destaque muito especial para o misto de sensatez e exuberância surreal com que Pedro Inês compõe a emblemática personagem de João da Ega.

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