Kris Hitchen e Katie Proctor — ser realista é também uma arte da representação


joao lopes
21 Nov 2019 13:09

Vivemos um tempo de super-heróis, cenários fantasistas, proezas digitais, aventuras virtuais, comunicação imaterial… Há quem distribua polegares ao alto, assim construindo uma rede de felicidade partilhada… E há também quem nos garanta que a velocidade da comunicação (simultânea e instantânea, comme il faut) nos garante uma nunca experimentada redenção…

Eis uma boa série de razões (ou falta delas) para descermos à terra e falarmos de realismo. Assim é: na Grã-Bretanha não há apenas estúdios de vanguarda capazes de garantir os mais sofisticados efeitos especiais. Aí persiste uma nobre tradição que não goza da mesma protecção mediática — o realismo britânico, precisamente — e Ken Loach, 83 radiosas primaveras, é um dos seus mestres.
O novo filme de Loach, "Passámos por Cá", ilustra e confirma uma componente essencial da sua trajectória criativa. A saber: tratar de problemas contemporâneos, do seu próprio país, através de histórias singulares. Entenda-se: histórias que colocam em cena personagens que não são geradas por CGI e com as quais, directa ou indirectamente, nos podemos identificar.
"Passámos por Cá" tem como título original "Sorry We Missed You", uma expressão que o protagonista, Ricky (Kris Hitchen), deixa escrita nos papéis que coloca na porta do destinatário de uma encomenda que não está em casa… Ricky está empregado numa empresa especializada na entrega de encomendas, teve de adquirir um veículo para garantir o seu trabalho e as coisas não estão a correr bem…
Com um invulgar sentido do pormenor dramático, Loach filma tudo isso com a precisão de um genuíno observador (realista, justamente), evitando generalizações fáceis, mantendo-se próximo da matéria viva dos corpos, seus encontros e desencontros. "Passámos por Cá" impõe-se, assim, como uma contundente e pedagógica crónica sobre os sobressaltos do emprego e desemprego.
Esquecemo-nos, por vezes, que tudo isso envolve algo mais do que a agilidade de uma câmara que sabe olhar para o quotidiano muito para lá do detalhe anedótico ou pitoresco. Enfim, Loach é também um notável director de actores: além do brilhante Hitchen, destaquemos Debbie Honeywood (a mãe), Rhys Stone e Katie Proctor (intérpretes dos filhos do casal) — o realismo é também um modo de representar frente a uma câmara de filmar.

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