Ellar Coltrane filmado por Richard Linklater — uma aventura de 12 anos


joao lopes
26 Nov 2014 23:41

Na televisão, os leitores de notícias passaram a referir-se a uma transmissão em directo como um evento "em tempo real"… Será que querem sugerir que, quando as imagens são inevitavelmente diferidas — por exemplo, em mais de um século dessa coisa sem importância a que damos o nome de cinema — o tempo deixa de ser real? E passa a ser irreal? E que, portanto, só quando estamos em frente do televisor podemos conhecer o mundo à nossa volta?…

São interrogações que nos empurram para uma banal dimensão caricatural. Mas podem ser também questões fulcrais, simultaneamente práticas e teóricas, estéticas e existenciais, capazes de nos situar num plano de relação fascinante — inteligente e criativa — com um enigma central de toda a história do cinema. A saber: como é que, através de um filme, podemos experimentar a passagem do tempo?

Com "Boyhood" (lançado entre nós com o subtítulo "Momentos de uma Vida"), Richard Linklater enfrenta tal enigma a partir de um método de trabalho verdadeiramente único — e que faz deste filme, não apenas um dos momentos maiores do ano cinematográfico, mas também uma singularíssima experiência em toda a história do cinema.
Que acontece, então, em "Boyhood"? Pois bem, seguimos a história de Mason, interpretado pelo magnífico Ellar Coltrane, uma criança que começamos por conhecer com cerca de sete anos e que acompanhamos ao longo de 12 anos, até à sua entrada na universidade. Como é que Linklater transfigurou Coltrane, de um miúdo fascinado pela sua bicicleta num jovem adulto a enfrentar uma etapa decisiva do seu desenvolvimento? Pois bem: filmou Clotrane durante… 12 anos!
É verdade: "Boyhood" nasce de um projecto em que a questão da passagem do tempo era inerente ao próprio método de rodagem. Coltrane, Lorei Linklater (filha do realizador e intérprete da irmã de Mason), Patricia Arquette (a mãe) e Ethan Hawke (o pai) encontraram-se periodicamente com Linklater — cerca de duas/três semanas por ano, a partir de 2002 — para fazer um filme que foi, afinal, concebido e executado, como uma observação atenta das transformações, físicas e emocionais, dos seus actores/personagens.
Nesta entrevista dada ao Film4, Linklater explica de forma eloquente a lógica e a concretização do seu projecto.
 
Em tempos de tantas e tão agressivas formas de banalização da(s) intimidade(s) — observe-se a desvergonha dos formatos da chamada "reality TV" (muitas vezes servida "em tempo real", hélas!) —, "Boyhood" existe, de uma só vez, como celebração da vida e exaltação do cinema. É um filme sobre o tempo e que, num certo sentido, o transcende, já que, no seu interior, passado ou futuro encarnam sempre à flor da pele, num prodigioso presente.

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