História da região de Cantanhede em livro, autor leu 12 mil jornais para a contar

por Lusa

Cantanhede, Coimbra, 17 jan (Lusa) - Um escritor de Cantanhede, distrito de Coimbra, leu durante oito anos cerca de 12 mil edições de jornais ali publicados nos últimos 100 anos para perpetuar em livro a memória daquela região do centro do país.

O projeto de Manuel Cidalino Madaleno, intitulado "Construir a memória na região de Cantanhede", resultou em 10 volumes, três já editados em livro e um quarto a caminho, depois de pesquisas efetuadas nos acervos da biblioteca local, mas também em Coimbra e na Biblioteca Nacional, em Lisboa.

"Nesses jornais existe um manancial extraordinário de informação, contada na primeira pessoa pelos correspondentes locais, porque até a uma época muito recente os jornais eram feitos pelos correspondentes nas pequenas aldeias", disse à agência Lusa o autor.

Embora Manuel Cidalino Madaleno tenha referenciado cerca de 40 títulos no total, os primeiros volumes recorrem a artigos de 16 jornais de Cantanhede e dois do concelho de Mira, informação que não se cinge àqueles municípios mas também a outras localidades periféricas dos municípios de Vagos, Anadia, Oliveira do Bairro e Mealhada, todos no distrito de Aveiro.

"Toda essa informação corria o risco de desaparecer, porque alguns dos jornais têm mais de 100 anos e estão num estado de conservação que deixa muito a desejar. É a história do nosso povo desde o século XIX e estava em risco de se perder", argumentou.

Os livros, que demoraram dois anos a escrever, estão organizados de forma temática e "traduzem a história política mas também aquilo que era a vivência do povo retratada pelos correspondentes locais", assinala Manuel Cidalino Madaleno.

Adianta que os volumes incidem, entre outros temas, sobre a relação entre a política e a religião, as superstições, a evolução económica, as festas, tradições, higiene e medicina ou "as lutas entre importantes elementos da cultura popular, como era o caso das filarmónicas. Há um extenso capítulo sobre filarmónicas em que a realidade ultrapassa a ficção", revelou.

"Bases para uma História Política", o primeiro volume, acompanha outras lutas, nomeadamente entre Regeneradores e Progressistas, em que pontificavam nomes como Ferreira Freire ou António José Poiares (bisavô do ex-ministro Miguel Poiares Maduro), nos anos finais da monarquia.

Se na leitura dos jornais o autor Manuel Cidalino Madaleno admite ter ido "de surpresa em surpresa" pelos factos narrados, uma das histórias mais rocambolescas acontece, precisamente, nas relações entre a Câmara Municipal de Cantanhede e o primeiro jornal local daquele concelho (A Voz do Povo, de 1889).

Conforme descreve Cidalino Madaleno "era habitual os membros eleitos para os executivos municipais, nas últimas décadas da monarquia, alhearem-se completamente do exercício do seu mandato" e o jornal, na sequência disso mesmo, formulou "algumas censuras" à gestão municipal. A resposta ao periódico foi dada em plena reunião camarária: aquando da entrada na sala do representante do jornal, "os senhores vereadores ergueram-se, esfregando os olhos - como se uma visão terrível lhes beliscasse o sono".

Noutra sessão, relatada pelo Defensor do Povo (1899/1890), o vice-presidente da Câmara "sentou-se de costas voltadas" para o redator e proprietário do jornal, que, perante o gesto, o apelidou, na crónica, de "sr. Dr. malcriado vice-presidente".

Já o segundo volume versa sobre Religião, Política e Superstições, e advoga, no capítulo relacionado com as ciências ocultas, a importância que bruxas, adivinhos e curandeiros tinham na sociedade local, "desde as questões de saúde aos assuntos matrimoniais e das doenças dos animais ao esclarecimento sobrenatural de fenómenos naturais", chegando até a dominar o poder político, até ao início do século XX.

O Jornal de Cantanhede, em 1902, escreve que na Costa de Mira, de cada lanço de pesca, cada campanha tirava "uma lota para a bruxa [da Figueira da Foz] à qual vão depois consultar". E mesmo em casos policiais a intervenção de adivinhos "era solicitada pelo povo" que "não espera nada da polícia" e assim foi a bruxa consultada no desaparecimento de uma vendedora de sardinha, em 1909.

Em declarações à agência Lusa, João Moura, presidente da Câmara Municipal de Cantanhede, entidade que tem vindo a editar os livros de Manuel Cidalino Madaleno, frisou que a obra "perpetua a memória" do município e da região.

"Ele recolheu tanta informação que aquilo que inicialmente seria um livro se transformou em 10 livros, 10 temáticas diferentes, com surpresas muito agradáveis, uma documentação factual dos dados jornalísticos", frisou João Moura.

JLS // SSS

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