Alemanha e Turquia trocam recados em Istambul

por Andreia Martins - RTP
Alemanha e Turquia têm conhecido vários episódios de tensão diplomática nos últimos meses. Ozan Kose - Reuters

Começou esta segunda-feira uma inédita cimeira que tem em vista a resolução da pior situação global em termos humanitários desde a Segunda Guerra Mundial. No primeiro dia de discussão, sobressaem as críticas de Recep Erdoğan à gestão da crise de refugiados por parte dos países europeus. Por sua vez, Angela Merkel pediu ao presidente um Parlamento turco “forte” e imprensa “livre” .

A escolha de Istambul para acolher a primeira cimeira mundial sobre a atual situação humanitária não foi feita ao acaso. A Turquia é atualmente o país do mundo que acolhe mais refugiados (ultrapassava os 2,7 milhões, no fim do mês de abril). Com mais de 125 países presentes, a crise de refugiados que desestabiliza a Europa foi, inevitavelmente, um dos temas a marcar o primeiro dia de cimeira. 

Erdoğan, o anfitrião de peso da conferência, acusou a Europa de “ignorar as suas responsabilidades” na questão síria. Num artigo de opinião publicado esta segunda-feira no britânico The Guardian, o presidente turco elogia os esforços da Turquia no acolhimento dos refugiados e denuncia um atual sistema de ajuda humanitária a nível mundial “em rotura”. 

“A comunidade internacional, em particular, ignorou as suas responsabilidades face aos sírios, fingindo não ver os crimes de Bashar al-Assad contra os seus próprios cidadãos”, reiterou.  

Já na cimeira, o presidente turco disse esperar uma maior partilha de responsabilidades com a Europa: “Não temos sido capazes de receber o apoio necessário por parte da comunidade internacional na crise de refugiados. Esperamos agora que haja uma partilha mais justa do fardo”, reiterou Erdoğan.

As respostas de Merkel, voz mais representativa da Europa durante a crise de refugiados, surgiram também durante a conferência. A chanceler alemã mostrou “profunda preocupação” com a situação interna na política turca, nomeadamente o levantamento de imunidade parlamentar, que deixa expostos os deputados pró-curdos (que compõem um quarto do parlamento turco). 

Merkel acrescentou que a Turquia precisa de um sistema judicial e imprensa “independentes”, bem como um Parlamento “forte”. 

Os próximos dias entre os dois chefes de Estado prometem ser tensos, até porque a chanceler disse concretamente que a Turquia terá de cumprir todas as exigências de Bruxelas até conseguir os vistos de entrada no espaço Schengen, uma das condições impostas por Ancara no acordo de março quanto ao acolhimento de refugiados. 

“É previsível que alguns itens não sejam implementados até 1 de julho, nomeadamente a libertação de vistos, porque as condições ainda não foram cumpridas”, disse Merkel após um encontro com o presidente turco. 
Reduzir para metade número de deslocados
Na abertura da cimeira, Ban Ki-moon focou as atenções num número: 130 milhões. É esta a totalidade de pessoas a precisar de ajuda humanitária, um recorde desolador e a atingir níveis que remontam à Segunda Guerra Mundial. 

“Estamos aqui para moldar um novo futuro. Peço-vos que se comprometam a reduzir para metade o número de civis deslocados até ao ano de 2030, e a encontrar melhores soluções a longo prazo para os refugiados e todos os deslocados, baseada numa partilha mais equitativa das responsabilidades”, exortou o secretário-geral das Nações Unidas.
Europa “desumana”
As principais críticas ouvidas no primeiro dia da conferência vieram mesmo da Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR), que acusou vários países europeus de atitudes “desumanas”, mais precisamente o encerramento e controlo apertado de fronteiras na rota dos Balcãs. 

"O súbito encerramento de fronteiras e as ações unilaterais dos Estados foram desumanas face a tantas pessoas vulneráveis”, referiu Melissa Fleming, porta-voz do ACNUR.

As críticas também chegam às altas instâncias de Bruxelas, que celebraram o acordo com a Turquia para o recâmbio de refugiados:

“Há várias pessoas que dão pancadinhas nos próprios ombros e dizem que o acordo funcionou, que as pessoas deixaram de chegar [à Europa]. Mas [o acordo] só empurra este problema, que continua por resolver”, disse a responsável. 
Portugal marca presença
Quem também esteve na abertura da cimeira foi António Costa, acompanhado pelo antigo alto comissário da ONU para os refugiados que agora pretende chegar ao lugar cimeiro da organização. O primeiro-ministro esteve na Turquia para mostrar a disponibilidade de Portugal para acolher mais refugiados, mas também para elogiar o trabalho de Guterres e ajudar a candidatura portuguesa ao mais alto cargo das Nações Unidas.

Daniel Pessoa e Costa, Sérgio Ramos - RTP

O ex-alto comissário para os Refugiados pede “decisões firmes e urgentes” na ajuda à atual crise de refugiados. 

"O mundo está a assistir a uma multiplicação de situações humanitárias dramáticas, quer por causa de conflitos, quer em consequência de catástrofes naturais. (…) É essencial que os diferentes Estados possam fazer ofertas firmes de diversos tipos de ajuda, designadamente ajudas financeiras às vítimas e aos países que as apoiam na linha da frente, caso dos vizinhos da Síria e da Somália", reiterou Guterres numa declaração aos jornalistas. 
"Para além das palavras"
Guterres é uma das figuras de renome que assume que esta cimeira pode mudar pouco na atual cena internacional. O candidato a secretário-geral das Nações Unidas diz mesmo que esse “é um risco de todas as cimeiras”. 

"Espero que esta cimeira seja um grande impulso no assumir esses compromissos, e que esses compromissos sejam cumpridos", referiu o antigo primeiro-ministro português. 

À partida, há pouca esperança de ver os desejos de Guterres e de outros intervenientes a concretizarem-se na realidade. Logo no início do mês, a organização Médicos Sem Fronteiras anunciou que não marcaria presença na cimeira. O grupo de assistência médica humanitária revelou “ter perdido a esperança” de que se obtivessem medidas concretas. 

De uma forma geral, os críticos apontam como principal falha a falta de financiamento à ajuda humanitária em conflitos regionais ou guerras civis, bem como os esquemas de corrupção que envolvem e desviam fundos de ajuda para as mãos erradas.  
 
Em declarações à agência Reuters, Malala Yousafzai resume o espírito dos mais desconfiados quanto aos resultados concretos desta cimeira que termina amanhã. A jovem laureada com o Nobel da Paz perguntava: “O que trará esta cimeira além das palavras? (…) Peço aos líderes mundiais reunidos em Istambul que sejam generosos e façam uso das suas palavras com vontade política”, reiterou.  
 
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