Bashar al-Assad, o oftalmologista que herdou a Síria

Em 2000 Bashar al-Assad recebeu em mãos o poder da Síria, assumindo-se como o herdeiro político do seu pai, Hafez al-Assad, ditador que governou o país com mão-de-ferro durante três décadas depois do golpe de Estado que infligiu a Nureddin al-Atassi em 1970.

Bashar al-Assad não estava inicialmente destinado a ocupar os comandos da Síria. Para isso tinha sido escolhido o irmão mais velho, Bassel.
Bashar Hafaez al-Assad nasceu a 11 de setembro de 1965 em Damasco.


Segundo filho de Hafez al-Assad, mas o primeiro filho homem, Bassel al-Assad vinha sendo preparado desde muito jovem para assumir a liderança após a morte do pai.

No caminho para o papel, fora-lhe conferida a chefia da segurança presidencial e cedo começou a honrar o laço entre o regime e as Forças Armadas, aparecendo frequentemente nas fotografias oficiais envergando a indumentária militar. Mas Bassel tinha também um fetiche por carros desportivos e viria a morrer de forma inesperada, em janeiro de 1994, numa manhã de nevoeiro, ao volante do seu potente Mercedes. Na estrada para o aeroporto internacional de Damasco, uma rotunda travava o rumo do futuro presidente.

A morte da Bassel impunha nova solução dinástica: Bashar al-Assad, médico de 28 anos, especializado em oftalmologia e aparentemente sem ambições políticas, na altura a trabalhar em Londres, é chamado a casa.
O Baath é o partido único na Síria e assenta no socialismo nacionalista árabe.


Em 1994 entra para a Academia Militar de Homs para em meia dúzia de anos se tornar coronel – pelo caminho são afastadas velhas patentes, de modo a colocar a seu lado jovens oficiais alauítas, de cuja lealdade fará uso no futuro.

Seis anos depois do regresso de Londres, com a morte do pai, em junho de 2000, tem 34 anos, o que obriga a uma alteração na Constituição síria, que estabelecia a idade mínima de 40 anos para o exercício da Presidência. Ultrapassada esta contingência, Bashar é apresentado como candidato único do Partido Baath e, no mês de Julho, sucede ao pai através de um referendo, tornando-se Presidente da Síria, cargo que ocupa até ao momento.



Para trás fica a Medicina e uma vida que estava projetada para ser vivida tranquilamente em Londres com a mulher. Asma Akhras, síria sunita filha de um cardiologista e de uma diplomata, nasceu e foi criada na capital britânica. Estudou no King’s College, onde se formou em Ciência de Computação, e passou pelo Deutsche Bank até ocupar o lugar de analista financeira nos escritórios de Nova Iorque da JP Morgan. É vista como uma mulher cosmopolita, com hábitos requintados que nem a guerra nem a destruição que se abateram sobre grande parte do território sírio conseguiram afetar. Em 2012, o Guardian dava conta de emails do casal que denunciavam uma vida faustosa enquanto grande parte do país caía aos pedaços. De acordo com o jornal britânico, a primeira-dama encomendava milhares de euros castiçais, mesas e lustres de Paris através da Internet no momento em que grande parte da população enfrentava já a fome e a penúria.
Primavera Árabe em Damasco?
Com novos ares na Presidência, estava desenhada nesse ano de 2000 uma constelação de fatores que por si só proporcionariam ao país uma viragem para a democracia. Pelo menos uma abertura a certos ventos de mudança. Mas os mais otimistas menosprezavam a existência da rede que tece os interstícios do poder sírio; apesar de tudo, uma rede frágil que não se pode permitir alterações bruscas na temperatura ambiente. O clã Assad pertence à minoria alauíta, um grupo étnico-religioso que vem do ramo xiita do Islão, mas que distingue deste pelas suas particularidades e atavismos muito próprios. Apesar de uma forte ocupação nas Forças Armadas, constituem meros dez por cento dos sírios, pelo que, face a uma maioria populacional de sunitas, o regime é obrigado a uma ginástica política pouco complacente com mudanças bruscas.
Após a explosão de violência nas ruas, em março de 2011, a guerra galgou para os terrenos de um conflito de “todos contra todos” em que interesses regionais antagónicos, e muitas das vezes contraditórios, dão ideia de se tratar de um problema irresolúvel.


“As pessoas falavam de uma Primavera de Damasco quando Bashar sucedeu ao seu pai", lembrou Chris Doyle, diretor do Conselho para o Entendimento Árabe-Britânico. “Houve mudanças, uma forma de ser mais aberta. O novo Presidente era mais acessível e algumas personalidades da velha guarda foram postos de lado”. Uma campanha doméstica e internacional foi levada a cabo para polir a imagem do casal, acrescentaria Chris Doyle.

De facto, chegou a falar-se de uma espécie de Primavera de Damasco, com reformas à vista na economia e a abertura à actividade privada de sectores como o da banca. O regime chegaria a libertar dissidentes políticos. Mas aconteceu que, se no início Bashar al-Assad ensaiou um discurso reformista, este não teve tradução concreta no quotidiano sírio. O sistema não convidava a grandes aventuras e o novo líder rapidamente o percebeu, deixando os atavismos democráticos, se é que alguma vez os teve, empacotados na sua casa da distante Londres.



Assim, foi com a naturalidade dos déspotas que em 2007 se fez reeleger com 97 por cento dos votos num referendo em que se apresentava como candidato único. Antigos colaboradores apontaram então Bashar al-Assad como um ditador hábil e calculista, à imagem do pai.

A face de ditador acabaria por revelar-se com os protestos populares. O desemprego e uma classe desfavorecida largada à sua sorte foram o combustível das primeiras manifestações, entre janeiro e março de 2011. A rua encheu-se de uma população descontente nas cidades de Damasco, Aleppo e Daraa. O Presidente Bashar mandou o Exército tratar do assunto. Vergada a revolta, o Presidente pensava ter ainda uma carta na manga: dizendo reconhecer a necessidade de “atender às aspirações do povo”, suspendeu o estado de emergência em vigor no país há 48 anos e aumentou o salário mínimo e assim também o salário dos funcionários públicos. Mas a revolta não estava dominada e já não andaria para trás. A voz popular exigia agora a sua deposição. A repressão foi implacável. Estava esboçado o tabuleiro de um conflito de todos contra todos.
No terreno
Falar nesta altura de um desenho das forças no terreno revelar-se-ia sempre precário, face aos constantes avanços e recuos dos grupos rebeldes e posições governamentais.
No seu sexto ano, a guerra síria fez mais de 260 mil mortos, 4,5 milhões de refugiados no exterior e cerca de 7,6 milhões de deslocados internos.


Será portanto mais útil atermo-nos para já ao tabuleiro geoestratégico que está por detrás dos desenvolvimentos desta guerra que, no seu sexto ano, fez mais de quatro milhões de refugiados e 260 mil vítimas, na sua grande maioria civis.

Na geografia síria passam a confluir os antagonismos regionais de um Médio Oriente em convulsão, onde os protagonistas, à vez, se unem e se digladiam.


Reportagem de Paulo Dentinho e Carlos Pinota, enviados especiais da RTP à Síria (14 de novembro de 2016)

Nesta conjuntura, Damasco passa a depender do apoio de antigos aliados: do Irão com o envio para o terreno dos Guardas da Revolução, dos xiitas libaneses do Hezbollah, da Rússia e, numa primeira fase, do envolvimento mais assertivo da diplomacia de Pequim.

Os conflitos étnico-religiosos fizeram o resto. O Exército Livre da Síria contra o regime, o Estado Islâmico (que se diz ser apoiado pela Arábia Saudita) contra todos e todos contra o Estado Islâmico. À mistura, centenas de grupos rebeldes que lutam contra as forças de Damasco e nos intervalos lutam uns contra os outros, mas ainda com espaço para intervenção dos curdos que atraem como mel o envolvimento da Turquia.



Ancara entrou no conflito para combater o Estado Islâmico, mas o grande objectivo seria destruir os curdos, que até ao momento se revelam como a principal força de combate ao Estado Islâmico. Para elevar o esquema a nível global falta apenas a intervenção da coligação internacional e das forças norte-americanas (amigos da Arábia Saudita, mas que prometem dizimar o Estado Islâmico), de regresso à região depois da retirada à pressa do vizinho Iraque.

E, contudo, é neste caldo que Bashar al-Assad está hoje mais forte do que alguma vez esteve nos últimos seis anos, quando a rua síria se encheu de protestos contra uma vida inclemente. Muito deve, neste aspecto ao envolvimento do Kremlin que, sob o pretexto de combater o Estado Islâmico, aponta antes a sua aviação aos grupos rebeldes da oposição a Damasco.



Foi ainda num país completamente fragmentado pela guerra que o Partido Baath e aliados venceram as eleições legislativas de 13 de abril deste ano nos territórios controlados pelo regime. A maioria das 250 cadeiras do Parlamento estavam à partida garantidas, num escrutínio totalmente condicionado. Denunciadas pelos adversários de Assad, as eleições foram apodadas no Ocidente como uma farsa.

Da mesma forma, a última vez que se realizaram eleições presidenciais, já em pleno conflito, em 2014, Assad obteve mais de 88,7 por cento dos votos. É verdade que votou menos de um terço do eleitorado, mas também é verdade que esta foi a primeira vez na história do regime que se apresentaram vários candidatos. Entretanto, o Presidente parece passar incólume perante todas as atrocidades praticadas pelas suas Forças Armadas contra a população civil – em particular a aviação – e de nada parecem valer as acusações de crimes de guerra e contra a Humanidade.

A RTP 1 transmite esta terça-feira, a partir das 21h00, uma entrevista do enviado especial da RTP à Síria, Paulo Dentinho, ao Presidente Bashar al-Assad.