Em 2002, foi publicado “The Emerging Democratic Majority”, uma obra de referência acerca da demografia eleitoral norte-americana. Neste livro, John Judis e Ruy Teixeira defendem que as alterações demográficas norte-americanas tenderiam a favorecer o Partido Democrata, em função do aumento do peso das denominadas minorias afro-americano e hispânica em relação à maioria branca. Catorze anos depois, esta realidade fica bem patente se colocarmos lado-a-lado uma imagem panorâmica da convenção republicana, que teve lugar na semana passada em Cleveland, e uma imagem da convenção democrata que agora termina em Filadélfia.
A demografia dos Estados Unidos da América mudou efectivamente nos últimos anos, confirmando as teses de Judis e Teixeira, como o demonstra o peso crescente dos afro-americanos nos “estados do sul” (sudeste) e dos hispânicos no Texas, no Novo México ou na Florida. O Partido Republicano não é um partido de matriz racista ou xenófobo. O mais famoso dos republicanos continua a ser Abraham Lincoln, o histórico Presidente que pôs fim à escravatura. Collin Powell foi durante anos considerado por muitos analistas como o mais provável primeiro Presidente afro-americano, tendo o seu nome sido veiculado, em 1996 e 2000, como eventual candidato republicano. No entanto, os dois mandatos de George W. Bush (2001-2009) e o aparecimento do movimento Tea Party pressionaram as elites e os dirigentes do partido no sentido de aceitarem com complacência uma deriva ultraconservadora, muito distante do seu enquadramento tradicional.
Nas eleições primários deste ano, o terreno já estava preparado para Donald Trump. Disposto a transformar os republicanos numa espécie de grande Frente Nacional (à francesa), Trump emerge com um discurso absurdo e desconcertante que conjuga uma total ignorância sobre a realidade política internacional com tiradas domésticas racistas e xenófobas. A sua estratégia passa por obter o apoio de uma grande coligação negativa de todos os que receiam a modernidade e a nova configuração da sociedade norte-americana, seja por preconceito religioso, ideológico ou social ou por aspectos práticos como a resistência às alterações dos modelos produtivos no sector industrial impostos pela globalização.
O mais surpreendente, porém, tem sido a ausência do “politicamente correcto” (i.e. do decoro) no momento em que mais falta faz. Este conceito traduz uma forma de estar na arena pública que limita comportamentos e palavras e que favorece um escrutínio permanente da vida (incluindo a privada) e do discurso de qualquer aspirante a cargo público. O agora candidato republicano sempre se pautou pela incontinência verbal e não deixa de causar espanto que uma candidatura possa ignorar completamente esse escrutínio. A Trump tudo tem sido permitido não só pelo seu potencial eleitorado mas sobretudo pela própria imprensa que ainda não começou a habitual “consulta de arquivos” a que todos os candidatos têm sido sujeitos.
A nomeação de Donald Trump como candidato republicano parecia uma piada de mau gosto há cerca de um ano. Hoje, a conjugação de milhões de norte-americanos receosos de assumir que a sociedade e a economia mudaram com a permissividade social e jornalística pode aproximar-nos de uma catástrofe política sem precedentes.