Quando terríveis criminosos vencem um debate a alunos de Harvard

por RTP
Bard College

Homicidas e criminosos, três homens condenados por crimes violentos sentaram-se frente-a-frente com a célebre equipa de debate da Universidade de Harvard, uma escola elitista que apenas recebe a “crème de la crème” dos alunos americanos. Ao fim de uma hora de debate, uma tradição nos Estados Unidos que não existe no nosso país, o júri atribuiu a vitória à equipa da Penitenciária de Alta Segurança de Nova Iorque. A chave do que à primeira vista pode parecer um enigma é um programa chamado Iniciativa Bard.

Desde 2001 que os detidos da Prisão de Alta Segurança de Nova Iorque têm a possibilidade de se inscrever num programa de formação para reclusos. Trata-se de um programa desenvolvido pela Escola de Bard (Bard Prison Iniciative na designação original) que acolhe actualmente 300 presos, muitos deles condenados pelas piores razões. Funciona sem apoios estatais, apenas sustentado por dinheiros privados, e faculta formação escolar à população prisional.
Os presos enfrentam ainda grandes dificuldades na preparação para os debates: não têm acesso à Internet e muitas vezes esperam meses pelo material didático.

Os presos que frequentam estas aulas constituíram entretanto uma equipa para os concursos de debates. Começaram a ganhar fama na Primavera de 2014, quando defrontaram e venceram a Academia de West Point, berço de muitas figuras de proa da história americana.

Seguiu-se uma vitória sobre a Universidade de Vermont e um debate de desforra com West Point, em que perderiam. A sua fama cimentava-se e desta vez o clube resolveu convidar a prestigiada equipa de debate da Universidade de Harvard, instituição que dispensa apresentações.
Penitenciária vs Ivy League
O debate teve uma hora e, no final, o painel de juízes deu a vitória à equipa de Bard. Este confronto tornou-se ainda mais peculiar quando os presos tiveram de defender a tese de que “as escolas públicas americanas devem ter a capacidade de negar o acesso a estudantes em situação irregular (undocumented students)”. Uma tese contrária às suas convicções, como referiu a equipa no final.

“As suas qualidades académicas são impressionates”, afirmou Mary Nugent.Mary Nugent, uma das juízes do painel que avaliou as duas equipas, sublinharia no final que a equipa de Bard defendeu de forma muito sólida que “estes alunos em situação irregular estavam a falhar tão redondamente que as escolas eram meros armazéns para onde eram despejados”.

No final, Carlos Polanco, um dos membros da equipa de Bard, nos seus 31 anos já preso por homicídio qualificado, explicou que esta não era de facto a via defendida pela equipa e que nunca lhes passaria pela cabeça sugerir que um jovem fosse barrado no ensino. Ele próprio se confessou grato por poder tirar um diploma na escola de Bard: “Fomos abençoados por esta oportunidade”.

Quanto à equipa de Harvard, explicou o júri, falhou em justificar vários dos pontos da questão em jogo: “Fomos apanhados com a guarda em baixo”, explicou Anais Carell, aluna de 20 anos de Harvard.

Terá sido apenas um desabafo, já que os campeões de Harvard deixaram no seu Facebook uma mensagem em que concedem a vitória com notável fair-play: “Três membros do HCDU tiveram o privilégio de competir contra membros do programa de debate da Iniciativa Bard. Poucas equipas há contra as quais nos orgulhemos de ter perdido um debate como a equipa que enfrentámos este fim-de-semana, incrivelmente inteligente e articulada. Estamos extremamente gratos a Bard e ao Estabelecimento Prisional de Nova Iorque pelo trabalho que estão a desenvolver e pela realização deste evento”.
Um recomeço

Mais do que marcar pontos num concurso académico, os presos e os responsáveis pela Iniciativa de Bard tomaram este trajecto como uma forma de mostrar à população prisional e aos responsáveis americanos que um recomeço de vida é possível até para uma das piores populações prisionais do país – um recomeço com condições, com formação.Dos mais de 300 alunos que já obtiveram um diploma quando estavam na prisão menos de 2% voltaram a ser presos nos três anos seguintes. No Estado de Nova Iorque, essa taxa está nos 40%.

E o programa prisional de Bard já chegou ao debate político. No ano passado, o governador democrata Andrew Cuomo propôs que o governo favorecesse as aulas para os presos, defendendo que era uma forma de os ajudar a tornarem-se menos problemáticos e mais produtivos - o que pouparia dinheiro aos contribuintes.

No entanto, nem o trunfo “dinheiro dos contribuintes” convenceu os republicanos, que contra-atacaram com o argumento de que famílias trabalhadoras e cumpridoras da lei tinham elas próprias de lutar com dificuldades para pagar as propinas das universidades, razão mais do que suficiente para o Estado não gastar dinheiro com diplomas para criminosos. O governador Cuomo deixou cair o seu plano.

Há no entanto dados que o GOP – como frequentemente faz – prefere ignorar: os responsáveis do Programa Bard fazem saber que dos mais de 300 alunos que já obtiveram um diploma quando estavam na prisão menos de 2% voltaram a ser presos nos três anos seguintes, o período de tempo usado para medir a reincidência criminal. No Estado de Nova Iorque, essa taxa de reincidência criminal é de 40%.
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