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"Morrem-me pessoas todos os dias"

Quando era miúdo não tinha medo do escuro, não tinha medo de filmes de terror, não tinha medo "do velho que vem aí se não comeres", nem do papão. Tinha medo da morte.

Era uma realidade longínqua que nunca tinha suportado, mas a ideia de ausência permanente deixava-me angustiado de tal forma que foi das primeiras coisas que me levaram a passar noites em claro ou mal dormidas. 


Depois começaram a morrer-me pessoas. O meu colega Vítor foi dos primeiros, ou pelo menos o primeiro que não era "uma estrelinha no céu". O rapaz que ontem tinha estado ali, mas que naquela manhã já não acordou e a quem todos gozávamos por se vestir "à seminarista"- foi das primeiras crianças que vi a usar gravata na escola ainda no ciclo preparatório - e por falar com pronúncia de "bijeu". Acho que nunca mais gozei com ninguém desde essa altura pelas diferenças de comportamento, culturais ou de gosto próprio em relação às indumentárias. 

Estivemos semanas a digerir a injustiça do nosso comportamento de crianças em idade parva, quando humilhar os outros parecia ser a forma de expiarmos as nossas próprias fraquezas. O Vítor morreu-nos naquela manhã e deixou-nos a terrível certeza em relação a uma suspeita que todos alimentávamos. Ao contrário do que nos diziam as pessoas não morriam velhinhas. Morriam em qualquer idade. E as crianças também morriam.

Depois morreu-me um dos melhores amigos de sempre, daqueles que nos faziam acreditar que éramos imortais. O Orlando. Era tão livre a pensar e a fazer que se tornou insuportável pensar que ficaria preso para sempre naquela campa fria do cemitério que conhecíamos tão bem desde miúdos. A referência geográfica limite da nossa infância. Ir para lá do cemitério era ir para o estrangeiro. O Orlando nunca mais iria a lado nenhum connosco e isso doeu-nos muito. Acabou por nos unir a todos em redor das suas loucas histórias e insolências escolares.

Há uns anos morreram-me os meus avós. Pessoas que adorava e que fazem parte das minhas melhores memórias de infância. Uma dor insuportável que aparece sempre colada às pessoas insubstituíveis no nosso coração. Pessoas para quem eu tinha sempre razão, e os meus pais não - coisa maravilhosa na infância -, pessoas sempre carinhosas comigo que eu só via no máximo três vezes por ano. Não há nada que substitua uma festa no rosto dada pela mão sedosa dos avós, mesmo que estejam sulcadas por rugas profundas que atestam uma vida de muitas dificuldades.
 
Agora, muitos anos mais tarde, começam a morrer-me as pessoas com quem trabalhei, com quem aprendi, que me habituei a admirar e a citar como bons exemplos desta profissão que ao contrário do que dizem é mesmo a mais velha do mundo. Morreram-me o Fernando de Sousa, o Etiano Branco, o José António Salvador, o Jorge Pena, o João Ferro e muitos outros. 
 
Muitos deles morreram sem que se cumprisse uma coisa tão simples como almoçarmos ou jantarmos sem hora marcada para o fim, para actualizarmos conversas adiadas e cumprirmos velhas promessas. Salvou-se o Jorge Pena com quem partilhei umas belas doses de ameijoas e um branco fresquinho com vista para o rio na margem de Alcochete. A Xana nunca soube em vida que tínhamos violado a proibição de consumo alcoólico, como se fosse o último desejo de um condenado. Quando lhe contei ela sorriu com saudades dessa teimosia saudável que não resistiu ao bicho nos pulmões. 

As pessoas morrem-nos todos os dias, e com elas morre um pouco de nós. Que nos acorde a urgência de vivermos e cumprirmos as nossas pequenas promessas. A de cumprirmos os rituais simples da amizade será uma das mais prioritárias.

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