Carta de Amor

Passaram 21 anos. Vinte e um anos e continuo apaixonada por ti. Não sei se é amor. Tenho a certeza que é paixão e por isso continuo aqui, apesar de tantas discussões, desencontros, desilusões.

Não sei se já me traíste. Eu fui tentada a fazê-lo. A culpa não foi tua, mas de quem vai manobrando o teu coração. És ingénua, só podes ser. Tantos já mandaram em ti e continuas a deixar-te levar. Por vezes, da maneira certa, pelo bom caminho, no entanto, noutras só tentaram destruir-te, a ti e aos teus, a mim e a tantos que fazem com que continues viva.

Nunca tive ciúmes, nem mesmo quando te esquecias de mim. Tu ou quem se aproveitava de ti. Sei que tens um coração enorme e que és capaz de nos cuidar a todos, aos milhares que já fizeram de ti a melhor e que continuam a manter-te rigorosa, objetiva, companheira, confidente, amiga (mesmo que venham umas certas empresas de sondagens tentar deitar-te abaixo). És a melhor.

Ainda não tinha feito 22 anos, curioso, há quase metade da minha vida que estás aí. Estava tão nervosa no nosso primeiro encontro. Deste por isso? Eras grande, poderosa, influente. Todos te conheciam. Eu não era ninguém. Sei que nos conhecemos devagar, como deve ser. Aos poucos, sempre com respeito e humildade, fui aprendendo a conhecer-te com a ajuda dos melhores. Com uma aprendizagem que hoje, infelizmente, pouco se faz. No Jornalismo a experiência é um posto e eu tive a sorte, a imensa fortuna, de aprender com os melhores. Deixaste-os sair tão cedo, porquê? Não há Jornalismo sem memória e a tua é gigante, mas com eles, nunca sem eles. Formaste jornalistas para as televisões privadas, para jornais, revistas, rádios, assessoria de imprensa... Muitos abandonaram-te com mágoa, empurrados, desrespeitados. Outros trocaram-te por outro amor. Terá sido amor? Talvez não, todos temos um preço, nem que seja a aventura, a procura de algo melhor, de fama ou prestígio. A ambição é tramada.

Depois… depois há quem permaneça contigo. Ainda não consegui deixar-te. Nunca sequer tentei, apesar de ter pensado nisso. Numa relação nem tudo é perfeito e há sempre terceiros que estragam tudo.

Quando te conheci tinha poucas certezas e hoje, duas décadas depois, são praticamente as mesmas que permanecem vivas. O amor pela família, com uma

filha que já nasceu no meio da nossa relação, o respeito pelo Outro e a paixão desmedida pelo Jornalismo.

Lembraste quando abandonei tudo para partir para o Sri Lanka, depois do tsunami? Vi o inferno em vida, mas vim tão mais rica, tão mais humana. No ano passado, voltei a fazer a mala durante a madrugada para ir para Nice, depois da loucura de um homem e não da ira da natureza.

Como me ri, em direto, quando entrevistei um grupo de alentejanos, num protesto de ecologistas aquando do fecho das comportas do Alqueva. Pensavam estar numa manifestação pró-barragem e, afinal, era contra a barragem. Que confusão se armou…

Naquele fim-de-semana em que estive 40 horas seguidas em Figo Maduro, à espera dos Guineenses e portugueses que fugiam da guerra em Bissau, sabias que não consegui descalçar-me? Tive de entrar para o duche com as botas e esperar que o inchaço diminuísse?

E na Rússia? Quase fomos presos na Praça Vermelha só por tua causa. Não podíamos fazer imagens, mas eu precisava tanto delas, por ti…

As dezenas de campanhas eleitorais, viagens oficiais dos últimos Presidentes da República e Primeiros-Ministros de Portugal. Passei meses, talvez anos de vida no Parlamento, no Palácio de Belém ou em São Bento. Conhecia-lhes os corredores de cor, os funcionários, sempre com o orgulho de te pertencer.

Para fazer Grandes Reportagens andei pelo Sahel a reconstruir uma maternidade; pelo Congo, antigo Zaire, a dançar com pigmeus; no Reino da Suazilândia com o português que é rei da informática. Revivemos os 500 anos da chegada de Cabral ao Brasil em Porto Seguro; os 40 anos do maio de 68 de Paris; os 10 anos do 11 de Setembro em Nova Iorque; a década da Independência de Timor-Leste; os 25 anos da Queda do Muro em Berlim… é impossível recordar, escrever tudo.

Com o teu nome nas mãos senti o pulso dos gregos na Praça Syntagma, primeiro no referendo pelo Não às imposições de Bruxelas, depois nas eleições que ditaram o Sim às medidas exigidas pela União. Recebi um milhar de refugiados no Porto de Piraeus. Escondi lágrimas, como tantas vezes. Abracei entrevistados, pessoas que nunca tinha visto e nunca mais vou ver. Fiz amigos para a vida, sei que deixei memórias a muitos que não me vão esquecer.

Todas as relações precisam de um tempo. Confesso que me sentia asfixiada. Continuo a ter-te nos braços, a dizer o teu nome quase todos os dias, junto do meu. Fazes parte da minha família, já integras os meus apelidos. No entanto, agora respiro-te, respeito-te, represento-te fora do país. Precisava e preciso desta distância para te ter mais perto. Sei que me entendes. Sei que assim somos mais fortes. Sabes que gosto de ti e que nada farei para te prejudicar.

Parabéns, querida amiga, obrigada por tudo. Ainda hoje vou voltar a assinar com o teu nome,

Daniela Santiago, RTP.

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