Pessoas extraordinárias

Em tempos de cólera, há que enaltecer quem merece. Seja pela coragem, pela irreverência, pela entrega aos outros ou, simplesmente, porque nos fazem bem.

Todos os anos a mesma coisa. Com a aproximação da quadra natalícia, os noticiários televisivos, as páginas dos jornais, enchem-se de histórias de bolo-rei e filhoses, de cidades iluminadas que só escurecem mais as vidas tristes, de jantares oferecidos aos pobres para aparecer na TV, de recordações/prendas sem significado, a contrastar com o esquecimento do ano inteiro.

Este ano, temo que a agenda internacional não permita aos fait-divers tomar conta dos alinhamentos noticiosos. Ao drama, que me envergonha, dos refugiados, junta-se outro embaraço, a situação em Alepo. Depois há um Donald Trump na América, um Eduardo dos Santos que deverá deixar o poder em Angola, um Football Leaks… enfim, vamos ver se há tempo para os sonhos, esses de farinha, ovos e margarina, onde não pode faltar uma casca de laranja e canela para polvilhar.

Quanto aos sonhos que nos fazem viver… prefiro falar-vos de três pessoas extraordinárias, três reportagens que vão ver nos próximos dias, na RTP, e nos fazem acreditar que há sonhos possíveis.

Luís Fernando dos Santos ajuda-me a acreditar na coragem, na perseverança, no talento. Aos 58 anos, este filho de um pintor e de uma varina, criado no bairro dos Olivais, é um perfeito desconhecido no país onde nasceu. Na mesma semana em que a imprensa esmiuçou o guarda-roupa da Rainha, antes jornalista, Letícia na visita oficial a Portugal, conheci o homem que vestiu e fez brilhar centenas de mulheres famosas espanholas. Lola Flores, Sarita Montiel, Rocío Jurado… conheceu-lhes as curvas, tirou-lhes as medidas, adivinhava-lhes o gosto, como ninguém. Luís F. dos Santos, tal como assina, sempre evitou entrevistas. A que lhe fizemos foi a primeira, em 30 anos de carreira. Honoré de Balzac dizia que se “deve deixar a vaidade aos que não têm outra coisa para exibir”, Luís produzia vestidos para os outros se exibirem, sempre na sombra do seu próprio sucesso.

Vestiu o Ballet Nacional de Espanha, os protagonistas das maiores óperas, peças de teatro, séries de televisão. Penélope Cruz passou-lhe pelas mãos para um filme de Almodóvar. Sara Baras, uma das melhores bailarinas e coreógrafas de Flamenco, dança e grava publicidade com os vestidos de Luís. Há três anos um AVC quase lhe rasgou o caminho. Luís perdeu o ateliê, os clientes e muitos dos que se diziam amigos, mas como é uma pessoa extraordinária… está a alinhavar a vida, outra vez.

André Sousa Moreira leva-me a crer no trabalho, na criatividade, na audácia. Aos 26 anos é um dos criativos mais promissores da Europa. Mudou-se para Espanha em 2013, numa altura em que milhares de jovens saíam de Portugal à procura de oportunidades, mas André era já um caso de sucesso. Trouxe o gato Lucas e vontade de crescer num dos mercados mais competitivos e exigentes. É diretor de Arte da Agência de Publicidade Tapsa Young and Rubican Madrid, uma das mais conceituadas em Espanha e no mundo. Para trás ficaram os pais e os dois irmãos gémeos. Sim, são três. Um é farmacêutico, o outro jornalista num canal de Televisão português, André enveredou pela publicidade. Com 26 anos, repito, já conta 55 prémios. Em apenas um ano conquistou 40, entre eles 5 leões no Festival de Cannes, todos para a Tapsa Young & Rubican Madrid. Vibra quando nos mostra as campanhas premiadas. Algumas para grandes marcas como a Opel ou a espanhola Telefónica, outras para recolha de fundos para Associações de crianças vítimas de cancro ou para dar abrigo aos que vivem nas ruas de Madrid. Tem uma humildade extraordinária, quando se refere ao trabalho, fala sempre em “nós”, na equipa que o rodeia e lidera, a que atribui grande parte deste sucesso.

Padre Ángel, o fundador da ONG Mensageros de la Paz, faz-me acreditar no altruísmo, na bondade do ser humano e na possibilidade de conseguir o impossível. Angél Garcia Rodríguez tem 79 anos e a energia de um rapazinho de 10. Corre o mundo para ajudar os desfavorecidos. Visita campos de refugiados, cidades devastadas pela guerra, crianças, mulheres e idosos que só têm passado e a ausência de tudo pela frente. Angél conseguiu, depois de anos de insistência, adaptar a Igreja de Santo Antão, na Calle Hortaleza, no coração de Madrid, num centro de apoio e assistência a quem mais necessita. Foi das primeiras reportagens que fiz como correspondente em Espanha. Andava a calcorrear o bairro da Chueca com a minha mãe quando a Igreja nos prendeu o olhar. À porta há placas que, ao contrário de proibirem, permitem a entrada de animais, a utilização de telemóvel com Wi-Fi gratuito e a possibilidade de recarregar baterias, comer e beber, conversar. Está aberta 24 horas, nunca fecha. Uma oração, um retiro, um banco para descansar, não há hora marcada para uma destas necessidades. Durante o dia distribuem sandes, leite, um caldo quente a quem tem fome. À noite repetem a refeição, enquanto os bancos da igreja se enchem de corpos cansados, enregelados pelo frio da noite madrilena, carentes de um teto que os proteja do relento. Há dois meses, cansado das filas que cresciam à porta da paróquia de San Anton para comer uma sanduiche, decidiu fazer algo. Considerava indigno, para um ser humano, em pleno século XXI, ter de esperar daquela forma para poder comer um pouco de pão. Começou a procurar espaços que estivessem disponíveis e, há dois dias, abriu o primeiro restaurante para sem-abrigo. Chama-se Robin Wood. Não se rouba aos ricos para dar aos pobres, mas o espírito de Robin dos Bosques encaixa na perfeição. Há dois turnos de refeição, com pequenos-almoços e almoços a preços de mercado e, a partir das 19 horas, abre para “pessoas vulneráveis”, exatamente com a mesma ementa, mas de forma gratuita. Espera-se que a “caixa” do dia consiga financiar os jantares solidários da noite. Uma iniciativa extraordinária de um Homem único, a um mês do natal.

Farta de notícias tristes, hoje ofereço-vos estas para continuarmos a sonhar.

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