O nosso vizinho esse animal

Há dias, o Papa pediu-nos para pormos a mão na consciência e pensarmos se não estaremos a ser mais cuidadosos com os nossos animais do que com os vizinhos. “Quantas vezes vemos as pessoas agarradas aos cães e aos gatos mas não ajudam o vizinho em necessidade”, lamentou Francisco. Mas haverá razões de preocupação com a compaixão humana? Sim e não.

Falando no Jubileu da Misericórdia sobre o tema da piedade divina, manifestada no sentimento de compaixão pelos que sofrem, o Papa Francisco exortou os fiéis a não confundirem a compaixão humana com a compaixão sentida para com os animais que vivem connosco. O alerta parece fazer sentido. Na verdade, quantos de nós não pensam o mesmo?

Mas, think again, não estaremos perante uma não questão? Não é nada difícil perceber o sentimento de compaixão para com os animais de companhia. Os animais são os nossos melhores amigos e ponto final. Não há neles disfarce, arranjo ou hipocrisia, apenas autenticidade. E por isso nada belisca a nossa relação com eles. Em certo sentido, são como crianças.

Quem tem gatos em casa compreende bem a crença milenar que diz que esses altivos animais absorvem as energias negativas – tantas vezes nascidas nas relações entre as pessoas, o que também ajuda a explicar porque razão é, às vezes, mais difícil relacionarmo-nos com elas do que com os animais. Mas atenção, não confundir isso com falta de compaixão.

Estamos também conversados quanto ao tipo de relação que um cão pode estabelecer com o seu dono. A pureza e a integridade do relacionamento entre um cão e o seu dono têm, na realidade, muito pouco com que se possam comparar. Mas quando o sofrimento do vizinho não é abstrato como na televisão, e sim concreto aos nossos olhos, a compaixão acontece.

Percebe-se as razões do Papa. Ao falar sobre o tema da piedade, um dos pilares da Igreja, Francisco tinha de manter viva a chama da compaixão para com aqueles – e não são poucos – que são vítimas de infortúnio. As suas palavras foram uma exortação a que se ponha de lado tudo o que mina as relações entre as pessoas, em favor de uma postura geral mais solidária.

Obviamente que não está aqui em causa a forma como tratamos os animais. Isso seria até estranho, num Papa que, há menos de um ano, declarou que os animais “também vão para o céu”, uma ideia revolucionária para muitos católicos. Está em causa, isso sim, deixarmos que o instinto da compaixão desperte de forma mais imediata e incondicional nas relações humanas.

O homem tem o egoísmo porque compete com o vizinho para a evolução da espécie. E tem a compaixão como automatismo para sobrevivência da espécie. O sofrimento do outro afeta-nos e impele-nos a ajudar porque é o grupo – a espécie – que está em causa. Aliás, a compaixão também existe nos animais. Os ratos de laboratório também correm a ajudar o próximo.

Na verdade, a compaixão humana nunca deixou de existir. Alargou-se foi a “todos os seres sensíveis”, como bem notou Darwin. O cuidado com os animais “parece ser uma das últimas aquisições morais. Esta virtude, das mais nobres, parece fruto de os nossos afetos se terem tornado mais ternos e amplos, até se alargarem a todos os seres sensíveis”, escreveu Darwin.

Em suma, sendo certo que parecemos mais alheados do sofrimento do próximo – sobretudo se nos chega pela comunicação social –, não penso que nos devamos preocupar demasiado com quem parece tratar melhor os animais do que os vizinhos. Schopenauer escreveu: “a compaixão pelos animais está associada à bondade de carácter, e aquele que é cruel com os animais não pode ser um bom homem” . Ora bolas se isto não é verdade!

pub