“Essas camisas do senhor visconde que têm de ficar perfeitas”

Há um novo livro nas livrarias que me estarrece pela sua lucidez. Entre o espanto e o magnífico retrato, encontro finalmente uma discrição sublime do meio onde cresci. Maria Filomena Mónica apresenta “Os Pobres”, em retrato intimista de uma socióloga que se interessou pelo Povo, logo pela frescura da adolescência, quando pede à família para adotar um menino.

Toda a minha infância ouvi a minha mãe contar histórias de Lisboa. Do seu horror de Lisboa. De quando era criada de servir e de como trabalhava os dias inteiros e as noites de ferro de carvão na mão, para tirar os vincos das camisas do senhor visconde, para que no dia seguinte estivessem perfeitas e mesmo que estivessem quase, voltavam para a noite seguinte ser outra vez passada em claro. 


Deve ter sido por causa destas histórias que, quando vim estudar para a Universidade em Lisboa, vinha aterrorizada.
 
Há neste retrato de “Os pobres” uma descrição exata de como viviam. E de como as classes mais ricas, os olhavam. Que é o mesmo que dizer: como os ignoravam. A noção de que nada sabiam, de que nada sentiam, de que a sua vida de miséria era consequência de condição natural e de seus próprios atos. De que nem valia a pena perguntar-lhes como eram as suas vidas ou mesmo que opiniões tinham do mundo, porque nem teriam resposta. Que eram acéfalos e imprudentes analfabetos, que tinham na porcaria e na doença, uma legítima “ordem divina”. Entre crenças no destino e poltronas de conforto, “os ricos” pouco olhavam para “os pobres”. 

O jornalismo vive hoje a maior crise. O problema do jornalismo em Portugal é que mantém esse mesmo olhar sobre “os pobres”. Isso mesmo: o Povo nada sabe, o Povo não percebe, o Povo não pensa, o Povo é ignorante. O que quer o Povo “sabemos nós”. A soberba com que se ditam as regras dos jornalismos hoje em dia revela uma verdade terrível: a falta de pensadores, de gente sábia e generosa nas redações. 

E porque o jornalismo é o bastião da defesa da democracia há que repensar o que andamos todos aqui a fazer. Ainda nos admiramos dos populistas eleitos e dos extremismos nacionalistas em crescendo por todo o mundo que se diz evoluído? Sim, a culpa é nossa. Dos jornalistas. Há bons exemplos, claro que sim. E são esses mesmos exemplos que, por comparação, nos surgem como esperança.

O livro de Maria Filomena Mónica carrega em si essa mesma esperança de que cada gesto, cada palavra, cada sentido pode mesmo mudar o mundo. E mesmo que a luta seja, na maioria dos dias, desgastante e demolidora, há sempre essa ideia que o caminho é para se fazer.

“Os Pobres”, de Maria Filomena Mónica, edição esfera dos Livros, Novembro 2016

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