Cabazes alimentares "podem ter utilização menos virtuosa"

por RTP
Rafael Marchante - Reuters

As cantinas sociais têm os dias contados. O Governo considera que o objetivo para o qual foram criadas em 2011, a resposta alimentar às famílias mais carenciadas, deixou de ter correspondência com a realidade. O novo modelo passa pela distribuição de cabazes alimentares, recorrendo a fundos comunitários. A exceção vai para os idosos e os sem-abrigo, que continuam a beneficiar de refeições diárias.

De acordo com parte do relatório de avaliação das cantinas sociais, a que a RTP teve acesso, mais de 90 por cento dos beneficiários consumiram menos de duas refeições por dia nestes refeitórios e 72 por cento levaram a refeição para consumir em casa.

Os fundamentos para o fim da medida prendem-se, essencialmente, com o facto de as características dos beneficiários não parecerem justificar uma resposta de apoio alimentar centrada exclusivamente no fornecimento de refeições confecionadas e o custo decorrente do modelo.

O relatório foi elaborado por um grupo de trabalho constituído por elementos do Instituto da Segurança Social e do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que avaliou três momentos: outubro de 2014, abril de 2015 e novembro de 2015.

"Todavia, considera-se que o encerramento desta medida não deverá ser concretizado sem que o prazo para o efeito seja dado a conhecer às entidades executoras da medida, bem como aos seus beneficiários, desejavelmente com alguma antecedência, e sem que se encontre disponível um instrumento alternativo de apoio alimentar para pessoas carenciadas", defendem os autores do mesmo estudo.
"Cantinas teriam de ser transitórias"
O Governo vai substituir o modelo de cantinas sociais pela distribuição de cabazes alimentares aos mais carenciados, recorrendo a fundos comunitários, anunciou já a secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim.

O presidente da União de Misericórdias, Manuel Lemos, concorda com a medida, mas em entrevista à RTP deixa um alerta: “É uma boa solução como princípio. O único problema que pode acontecer é que, em famílias muito desestruturadas, esses cabazes possam ter uma utilização menos virtuosa, possam ser vendidos, por exemplo. Mas esse é um risco. O Governo está ciente disso e nós também”.

O responsável pelas Misericórdias referiu ainda que "as cantinas sociais pela sua própria natureza teriam que ser transitórias (…) Em face da crise, do aumento brutal do desemprego nós disponibilizámo-nos a trabalhar com o governo de então numa situação de emergência que cumpriu o seu papel. Depois a situação económica foi melhorando um pouco e nós verificamos que havia uma diminuição das pessoas nas cantinas e, portanto, não fazia sentido".

Ainda assim, Manuel Lemos referiu que se esta solução for "devidamente acautelada e controlada, estavamos disponíveis para colaborar com o Governo".

Sobre o facto de haver uma percentagem de pessoas que não vai poder confecionar os alimentos, o presidente da União de Misericórdias disse que “este sistema em si próprio vai ser dinâmico. É esta a opção. Não temos nada contra ela. Com certeza que há riscos mas na outra solução também havia riscos".

O presidente da União de Misericórdias considerou também que "um Estado não pode permitir que na Europa do século XXI haja situações regulares de fome, não por opção das pessoas mas porque a situação económica e social faz disso um problema".

Para Manuel Lemos, as soluções são muitas e variadas. O objetivo é que "não haja fome generalizada em Portugal". "O Governo entendeu que, neste momento, a situação dos cabazes era uma solução melhor. Em si mesmo é. Nunca esteve em causa mas não é a única. Pode haver outras. Esta é uma solução evolutiva".

O presidente da União de Misericórdias não defende um modelo único, até porque "há centros urbanos, rurais e territórios de baixa densidade onde as pessoas vivem isoladas. A cada momento há uma solução predominante. Isso não quer dizer que não haja outras soluções que cumpram o objetivo: tanto quanto possível não haja gente com fome".

Este responsável considerou que Portugal é estruturalmente um país pobre e que os recursos são muito baixos numa larga camada da população. "O que é importante é que o país no seu conjunto enriqueça um bocadinho. É óbvio que as pessoas precisam é de mais recursos económicos, por isso, vimos com muita simpatia o aumento do salário mínimo", concluiu.

Mais de metade dos beneficiários das cantinas sociais, em 2015, eram homens com menos de 65 anos e rendimentos inferiores a 201,53 euros, revela o mesmo estudo do Governo a divulgar na íntegra no portal do Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP).
Os dados
Analisando ainda a evolução do número de beneficiários, os dados do relatório indicam que havia cerca de 31 mil em outubro de 2014, 34,5 mil em abril de 2015 e 33 mil em novembro de 2015.

Ao longo deste período, foram cerca de 17 mil os beneficiários que se mantiveram nas cantinas sociais. O estudo indica que mais de metade, ou seja, 54 por cento, dos cerca de 33 mil beneficiários em 2015 eram homens, cerca de 68 por cento tinham entre os 18 e os 64 anos, 25 por cento eram crianças e jovens, 6,5 por cento tinham mais de 65 anos e sete por cento eram pessoas com deficiência.

Reportagem de Filipe Pinto, Ana Raquel Leitão, Filipe Silva - RTP

De acordo com o estudo, a maioria dos agregados, em 2015, tinha "rendimentos que cumprem o conceito de carência económica usado pela Segurança Social (valor per capita igual ou inferior à pensão social, 201,53 euros)".
"Mesmo no ano de 2015, em que já se verificou um ajustamento ao número de refeições protocoladas, ficaram por servir um número médio diário de mais de seis mil refeições protocoladas”.


O relatório refere ainda que houve um "sobredimensionamento da oferta das refeições", com uma taxa de execução de cerca de 41 por cento em 2012, 68 por cento em 2013, 83 por cento em 2014 e 87 por cento em 2015.

Relativamente à evolução dos custos da medida, o estudo revela que foram cerca de cinco milhões, em 2012, 28 milhões, em 2013, 37 milhões, em 2014 e 38 milhões, em 2015.

Os autores do estudo consideram "adequado que seja definido um prazo limite para a duração desta medida", que foi concebida desde o início como uma resposta a situações de emergência e com duração limitada no tempo, isto é até 2014.

À agência Lusa, o presidente da Cáritas Portugal disse estar a favor da substituição do modelo de cantinas sociais por distribuição de cabazes alimentares, mas defendeu que só deve ser feito se se assegurar outras prestações de serviço como o gás.
Cáritas quer pagamentos de outros serviços
"Estou a favor desta ajuda, é essencial para muitas famílias, mas considero que a distribuição de produtos alimentares deve ser feita desde que se assegure outra prestação de serviços como o pagamento de água, luz, gás. Isto para que as pessoas possam confecionar as refeições", sublinhou Eugénio Fonseca, defendendo que deve haver também diversidade de alimentos para facilitar uma dieta alimentar correta.

De acordo com o Governo, a distribuição de alimentos será feita através do Fundo Europeu de Auxílio às Pessoas Mais Carenciadas (FEAC) e irá beneficiar cerca de 60 mil pessoas.Os beneficiários vão receber cabazes alimentares, que integram na sua composição carne, peixe e legumes congelados, com o objetivo de cobrir as suas necessidades nutricionais diárias em 50 por cento.

"Eu defendo três modelos: a distribuição de géneros alimentares desde que se assegure a diversidade dos alimentos, portanto que não estejam concentrados apenas em alguns produtos alimentares que resultam daquilo que são excedentes em cada ano em termos de produção de bens alimentares na zona da União Europeia", disse o presidente da Cáritas.

"O segundo modelo que defendo tem a ver com a pobreza envergonhada. Devia ser feito o que a Cáritas fez com a ajuda dos portugueses e do grupo Jerónimo Martins que foi distribuir vales universais de compras para que as pessoas possam ir aos sítios onde costumavam ir para poder confecionar com liberdade as suas refeições", salientou.

Ainda segundo o presidente da Cáritas Portugal, esta atuação traz vantagens como o anonimato, que assegura que a tal pobreza envergonhada possa aceder aos bens alimentares sem intermediários.

"Por outro lado, assegura também a ocupação das pessoas que enquanto pensam na organização do dia, na ementa, no ir às compras e confeção das refeições não pensam na situação dolorosa em que se encontram. Podem ser evitadas depressões", concluiu.
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