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Donald Trump, Figura Internacional de 2016. E dos próximos quatro anos

No plano internacional, o magnata de Nova Iorque é a incontornável personalidade do ano, ou não tivesse sido a escolha dos norte-americanos para liderar os destinos do país mais poderoso e influente do mundo. Donald Trump é a escolha da redação da RTP para Figura Internacional do Ano.

Em entrevista à Rolling Stone, na ressaca após a eleição de Donald Trump, Barack Obama deixou um recado direto e clarividente ao seu sucessor: “Não importa que tenhas estado em campanha. Quando ocupas este cargo, fazes parte de um legado que remonta aos primeiros Revolucionários. E essa experiência incrível em democracia deve ser cuidada".

O primeiro Presidente negro dos Estados Unidos abandona a Casa Branca para dar lugar a um candidato republicano que ocuparia certamente o pódio dos mais polémicos da história contemporânea. Donald Trump só toma posse no próximo ano, no dia 20 de janeiro, mas já amealhou amigos e inimigos durante a campanha, já semeou a polémica entre setores, raças, crenças, nacionalidades, já virou muitas regras e preceitos pré-concebidos de pernas para o ar. 




A preocupação latente de Obama em deixar Trump avisado para a responsabilidade do cargo de Presidente dos Estados Unidos, ao ponto invocar a Revolução Norte-Americana do século XVIII e os Pais Fundadores, não é destituída de sentido nem oca em inocência.

Desde os anos 70 do século passado que o magnata agora eleito se destaca pelo estilo opulento, egocêntrico e imprevisível, fazendo dessas características a sua própria bandeira no mundo empresarial. Agora, poderá trazê-las para Washington.
Pós-verdade e “notícias falsas”
Os traços de personalidade e formas de estar que Donald Trump inaugurou na política norte-americana chocaram com o establishment político desde o primeiro momento, quando ainda em junho de 2015 anunciou a candidatura às eleições primárias do Partido Republicano. Foi a histórica e amplamente documentada ofensa aos “drogados e violadores” mexicanos, numa autêntica entrada de rompante que apanhou a imprensa desarmada. 


Muitas polémicas se seguiram: muçulmanos, mulheres, ofensas a veteranos, a relação supostamente próxima com movimentos de supremacia branca. O problema impunha-se: como tratar editorialmente alguém tão inconsequente, quando falamos de um candidato à Presidência? Alguns aproveitaram-se do momento com as virais fake news, um tema que tem dominado discussões nos Estados Unidos.

São os próprios fabricantes destes conteúdos inverosímeis a acreditar que a disseminação de notícias falsas e a publicação de “teorias da conspiração” nas redes sociais, como se se tratassem de factos consumados, contribuíram decisivamente para a escolha dos norte-americanos. Algumas das histórias que ultrapassaram o real chegaram a ser partilhadas pelo próprio Presidente eleito e respetivos apoiantes. Hillary Clinton, a candidata democrata derrotada por Trump, alertou recentemente que as histórias falsas são uma “epidemia” e têm “consequências no mundo real”.

Poucos dias após ter sido conhecido o desfecho das eleições nos Estados Unidos, outro grande debate em volta da figura de Donald Trump é reconhecido institucionalmente: a Oxford Dictionaries anunciava ter escolhido o termo post-truth, ou pós-verdade, como Palavra do Ano de 2016. A expressão não é novidade: já existe desde 1992 e até titula livros publicados há mais de dez anos.

Mas há justificação para só este ano ter merecido verdadeiramente atenção. Se a verdade é subvalorizada no que é publicado, também na formação da opinião pública ela perde estatuto. Passam a ser os apelos e argumentação emocional, não os factos, a predominar na formação de opinião. Em setembro, por altura do primeiro debate presidencial, a imprensa chegou a falar no primeiro embate na era pós-verdade, com Donald Trump alegadamente a negar declarações e posições tomadas no passado.
Presidente de "todos os americanos"
Em pouco mais de um mês, o Presidente eleito conseguiu continuar a dominar a agenda mediática, debruçada nas sucessivas polémicas e no que poderá marcar o seu mandato inaugural como comando em chefe. A verdade é que, desde que foram conhecidos os resultados, Donald Trump mostrou-se apto a moderar-se e a apropriar o discurso a um “tom presidencial”.

No discurso de vitória, ainda durante a madrugada que ditou a eleição, Trump prometeu que seria “o Presidente de todos os norte-americanos”.

Moderou desde logo a retórica em relação a Hillary Clinton – que no passado prometeu deter e prender, caso fosse eleito Presidente -, e agradeceu à adversária pelo trabalho de várias décadas ao serviço dos Estados Unidos. 

Agradeceu também aos mais fiéis apoiantes: “Esta não foi uma campanha normal, mas antes um movimento enorme e incrível, feito por milhares de homens e mulheres trabalhadoras que amam o seu país e querem um futuro melhor e mais brilhante para si e para as suas famílias”, referiu.

Foi um movimento de facto avassalador, capaz de derrubar uma imprensa hostil e pouco favorável a candidato, um Partido Republicano esquartejado em fações, com as principais figuras de renome reticentes em apoiar o seu próprio candidato, a orientação geral do conjunto de sondagens que garantia, de forma esmagadora, a vitória da candidata democrata e ainda o impacto das polémicas, mesmo quando elas foram longe demais.

O discurso conciliador não convenceu, no entanto, todos os norte-americanos. Logo após terem sido conhecidos os resultados, multiplicaram-se os protestos por várias cidades nos Estados Unidos. “Not My President” ou “Não és o meu Presidente” foi o grito de guerra inscrito nos cartazes, em manifestações que se prolongaram durante vários dias. A Trump Tower, em Nova Iorque, jamais conheceu um dia sossegado. 

As promessas. Quais promessas?
Talvez o conselho de Barack Obama, a alertar para o peso histórico que agora vai ocupar, tenha suprido o efeito desejado no que se refere às promessas mais absurdas durante os longos meses de campanha.

Uma delas, já referida, a promessa de prender Hillary Clinton. Em vários comícios, os apoiantes de Trump exclamavam “Lock her up!” ou “prendam-na”, acompanhados por figurinos da candidata democrata em fato laranja. Numa das poucas entrevistas concedidas à imprensa desde que foi eleito, Trump confessava que esse assunto já não o preocupava como antes e gostaria de olhar para o futuro.

“Eu quero seguir em frente, não quero andar para trás. Não quero magoar os Clinton”, referiu o Presidente eleito.

Outras promessas da campanha que ficaram por terra poderão ter desiludido os apoiantes e acalmado os que não lhe atribuíram o seu voto. Na mesma entrevista ao New York Times, Trump admite reconsiderar o recuo prometido no acordo de Paris para o clima. Negacionista no que diz respeito ao aquecimento global, garantiu que teria a partir de agora uma “mente aberta” admitiu de forma inédita – mas ainda assim vaga - que os problemas ambientais têm “alguma conexão” com a atividade humana. 

O apoio ao waterboarding, que chegou a ser acerrimamente defendido durante debates ainda durante as primárias republicanas, também cessou, muito pela intervenção de James Mattis, general já reformado, que irá comandar o Departamento de Defesa na administração Trump, e que terá dito, em relação à abordagem de suspeitos de terrorismo: “Dê-me um pacote de cigarros e umas cervejas e consigo fazer melhor”.



Mas nem todos os compromissos ficaram por terra. Em entrevista ao 60 Minutes, na CBS, já depois das eleições de dia 8 de novembro, Donald Trump garantiu que mantinha a intenção de deportar os imigrantes ilegais que vivem nos Estados Unidos.

“Vamos pegar nas pessoas que são criminosas e têm cadastro, membros de gangs, traficantes de droga. Há muita gente dessa, provavelmente dois milhões, poderão até ser três milhões. Vamos expulsá-las do país ou detê-las”, esclareceu.

A promessa de construção de um muro entre os Estados Unidos e o México também é para manter. Na mesma entrevista à cadeia televisiva norte-americana, Donald Trump lembrou que o traço entre os dois países já estava bem demarcado por políticas de Presidentes anteriores, bem como por fortes sistemas de vigilância e elementos de segurança. O Presidente eleito disse até aceitar apenas vedação em certas zonas, mas outros locais, considera, pedem mesmo a construção de um muro.

Em termos económicos, mantém-se a intenção de dar um novo fôlego à economia e garantir empregos os norte-americanos. Para já, há a intenção de sair do Acordo Comercial Transpacífico (TPP), uma medida que pouco agradou aos parceiros asiáticos.

“Em vez do acordo, vamos negociar acordos bilaterais justos, que tragam o emprego e a indústria de volta aos EUA. Já não era sem tempo”, reiterou num vídeo publicado no YouTube.
Full-time job
A fortuna que Donald Trump acumulou ao longo das últimas décadas faz dele um caso único na história recente da política norte-americana. No início de outubro, a revista Forbes avaliava o património líquido do então candidato em 3,7 mil milhões de dólares, colocando-o no topo da lista dos Presidentes eleitos com maior fortuna.

O magnata já demonstrou que quer continuar a viver na Trump Tower, onde detém um autêntico palacete de luxo e onde, até aqui, geriu o seu negócio. Mas nem por isso deixa de garantir que irá dedicar todo o seu tempo e esforço à Presidência dos Estados Unidos nos próximos quatro anos.

“Se for eleito Presidente, não vou querer saber da minha empresa. São peanuts. Liderem vocês a empresa, miúdos. Divirtam-se”, disse o então candidato durante um debate entre republicanos, em janeiro deste ano.



Fique em Nova Iorque ou na Casa Branca, levantam-se os problemas de conflitos de interesses. Isto porque, ao chegar à Presidência, não há qualquer obrigação legal no sentido de prescindir da fortuna ou de entregar a gestão do negócio a instituições ou fundações imparciais. Não é imperativo, mas costuma ser regra.

No entanto, Donald Trump está decidido em manter o negócio na família, delegando funções nos dois filhos adultos. O império de hotéis de luxo, casinos e campos de golfe entra em conflito com questões económicas e diplomáticas, mais não seja pela marca Trump Organization, o que a torna indissociável da sua figura de proa.

A título de exemplo, temos o maior credor nos negócios de Donald Trump, o Deutsche Bank, que se encontra atualmente em conflito com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. O gigante alemão enfrenta uma potencial multa por parte do Governo norte-americano de 14 mil milhões de dólares, por investigações às hipotecas “tóxicas” emitidas pelo banco durante a crise imobiliária nos EUA.

No entanto, há neste campo um profundo desconhecimento. Donald Trump recusou por várias vezes revelar as declarações fiscais, uma informação que seria preciosa para ajudar a mapear as participações financeiras e contas externas do magnata, ou seja, os possíveis conflitos de interesse e abusos de poder.
Primeiras polémicas
Junto ao Central Park, bem no centro de Manhattan, a 5th Avenue tem vivido um mês ainda mais agitado que o normal. As reuniões da equipa de transição de Donald Trump têm decorrido na famosa Trump Tower, onde os jornalistas se juntam para conseguir apurar quem irá integrar a Administração Trump.

Até agora, a equipa divide-se entre nomes consensuais e polémicos, num equilíbrio por vezes difícil e que chegou ao clima de “purga”. O nome mais controverso será o de Stephen Bannon, escolhido como conselheiro, e que fez despertar os fantasmas da campanha que associavam Trump ao alt-right e a movimentos de supremacia branca. 


Também a grande proximidade com Jared Kushner, genro do Presidente, gera enorme polémica. Mas Donald Trump deposita total confiança no seu braço direito, e acredita que ele seria capaz de resolver o conflito israelo-palestiniano.

Enquanto não se conhece a totalidade da equipa que segue com Trump para a Casa Branca, faltando ainda revelar nomes importantes como o do secretário de Estado, o Presidente eleito não dá descanso às rotativas. Nem aos telemóveis. Nem ao Twitter.



E porque falamos na palavra dada pelo próximo Presidente do “mundo livre”, deixaram de ser meras ameaças ou estados de espírito de um magnata excêntrico sem possibilidades de ser eleito, as palavras têm consequências graves. Na semana passada, Donald Trump conseguiu penalizar a Boeing, responsável pela construção do próximo Air Force One.


Os custos do aparelho “estão fora de controlo" e por isso a ordem é para cancelar. E os custos desta afirmação para a empresa foram, desde logo, uma forte queda nas bolsas.



Na autobiografia The Art of The Deal (A Arte do Negócio), publicada em 1987, Donald Trump emerge como uma figura reservada dentro do seu círculo, capaz de ficar dias inteiros ao telefone no seu gabinete. Mas agora já não faz chamadas na pele um jovem aspirante a empresário que tenta ajudar a empresa do pai, nem de um milionário influente, nem de um candidato republicano. 

A agenda de contactos de um Presidente dos Estados Unidos é bastante mais alargada, o estabelecimento de ligações informais não deixa de ser a face visível de um país soberano perante o mundo. Que o diga a China, furiosa com o recente telefonema entre Trump e a chefe de Estado do Taiwan. 
Donald Trump é a escolha da RTP para 2016, pela irreverência que trouxe à política, pela mudança de paradigma na formação da opinião pública, pela imprevisibilidade de discursos e ações, pelo estado de estupefação em que deixou o mundo por ter conseguido alcançar a Presidência. 

A avaliação coincide com a que foi revelada pela Time, quando escolheu Donald Trump como "Person of the Year" de 2016. Nancy Gibbs,  editora-chefe da revista norte-americana refere que a escolha para este ano foi muito fácil. 

"Quando é que vimos um único indivíduo a desafiar as expectativas, quebrar as regras, violar as normas, a derrotar não derrotou um, mas dois partidos políticos no caminho da vitória numa eleição em que entrou com uma em 100 probabilidades contra ele? Não acho que tenhamos visto uma pessoa - a operar de uma maneira tão pouco convencional - com um impacto tão significativo nos eventos do ano como aconteceu neste", justifica a editora.

A avaliar pelo que já sabemos sobre Donald Trump ou pela importância dos Estados Unidos no sistema internacional e no equilíbrio de poderes, questionamos se esta escolha não poderá vir a ser repetida no decorrer dos próximos quatro anos, pelos melhores ou pelos piores motivos.

Ricardo Alexandre, Nuno Castro - RTP

Fotografias: Paul Hanna, Mike Segar, Mark Kauzlarich, Shannon Stapleton, Kevin Lamarque, Darren Ornitz - Reuters