Steyr-Puch tem historial de relações problemáticas com Portugal

por RTP
As primeiras notícias que relacionam a Steyr com Portugal datam dos anos vinte do século XX DR

A presença, no mercado português, de armamento vendido pela Steyr-Daimler-Puch remonta, pelo menos, aos anos vinte do século passado. Já então era acompanhada por uma auréola de escândalo a que volta a fazer jus agora, a oitenta anos de distância, quando invoca o incumprimento do contrato dos submarinos para justificar o incumprimento do contrato dos blindados.

A empresa austríaca Steyr começara em 1864, de forma aparentemente inócua, a fabricar espingardas, depois bicicletas, e depois automóveis. As bibicletas não estavam destinadas a marcar os rumos da empresa. A sua verdadeira vocação era um misto de espingardaria com veículos motorizados - e assim evoluiu a Steyr no caminho que faria dela uma grande fabricante de blindados para exércitos nos quatro cantos do mundo.

Pistolas-metralhadoras com rótulo falso para Portugal

As primeiras notícias que relacionam a Steyr com Portugal datam dos anos vinte do século XX. Elas não dizem, todavia, respeito à venda de blindados, e sim à de armas de fogo.

O exército português era então um dos clientes habituais da Waffenfabrik Solothurn, uma fábrica de armas localizada na Suíça, mas dirigida por um técnico alemão, Hans Eltze, e financiada por capitais alemães e austríacos. A deslocalização desse investimento explicava-se pelas determinações do Tratado de Versalhes que, desde o final da Primeira Grande Guerra, proibiam às derrotadas Alemanha e Áustria exportarem armamento.

Eltze, director-geral da alemã Rheinmetall, fora enviado para a Suíça com o intuito de criar uma empresa de fachada suíça. Fê-lo a meias com o "rei das munições", o industrial austríaco Fritz Mandl. Engenheiro de armamento, fez projectar vários modelos de pistolas-metralhadoras e espingardas-metralhadoras e mandou depois produzi-las na Steyr. As pistolas-metralhadoras S1-100, com o enganoso rótulo made in Switzerland, foram vendidas a vários países, entre os quais Portugal.

O entrosamento entre a Steyr e a Waffenfabrik Solothurn subiu depois mais um degrau, com a criação de uma joint-venture, a Steyr-Solothurn Waffen AG. Esta continuava dirigida pelo mesmo Hans Eltze, que depois encontraremos no papel de influentíssima eminência parda na Lisboa dos anos da guerra.

Uma primeira falência

De momento, no entanto, a Steyr sofria uma reestruturação profunda, devido às violentas repercussões austríacas da crise de 1929. Como principal devedora do Bodenkreditanstalt, ela constituiu um factor de peso para a bancarrota deste banco e para a queda em dominó do sistema bancário austríaco.

O governo de Viena obrigou então um outro banco - o Creditanstalt pertencente a Louis Rothschild - a adquirir o banco falido, com todo o seu activo e passivo. E, com esta imposição, apenas acelerou a bola de neve. Na sequência da crise, a Steyr fundiu-se em 1934 com a Austro-Daimler-Puch, originando o nome actual de Steyr-Daimler-Puch.

A Steyr derrota a Mauser em Lisboa

Esta Steyr em crise não deixava, entretanto, os seus créditos por mãos alheias e, em 1931, protagonizava um episódio controverso no mercado português. O exército tinha então aberto concurso para a adaptação de 60.000 espingardas Mauser de 7,65 mm ao calibre inglês, de 7,7 mm.  Concorreram nove empresas e foram seleccionadas duas - a própria Mauser e a Steyr.

A proposta apresentada pela Mauser no âmbito desse concurso parecia irrecusável, porque incluía preços baixos e um plano de realizar os trabalhos de adaptação na fábrica de Braço de Prata, em Lisboa. Ela era, além do mais, representada junto do Ministério da Guerra por um lobby insistente e enérgico.

Mesmo assim, e para surpresa geral, a oferta da Steyr prevaleceu. Os motivos desse êxito podem ser vários, mas os protestos enfurecidos da Mauser referiam a abertura do envelopes, para a oferta austríaca ser retocada de modo a superiorizar-se à concorrente. O lobby da Steyr parece, portanto, ter sido mais poderoso ainda que o da Mauser

A verdade é que isso de pouco lhe serviu: a proposta aprovada acabou por nunca ser transformada em contrato. Com efeito, o tempo correu e, com o início da Guerra Civil de Espanha, o exército português trocou o calibre inglês pelo calibre ítalo-alemão. Era a melhor forma de encomendar armas italians e alemãs para Espanha como se se destinassem a Portugal, e de fornecê-las a Franco sem suscitar demasiados protestos.

A Steyr e o nazismo

Durante a guerra, a Steyr produziu blindados para o exército alemão e, em contrapartida, recebeu prisioneiros do campo de concentração de Mauthausen, que foram colocados ao seu serviço como escravos. Depois da guerra foi refúgio para diversos criminosos de guerra nazis.

O mais famoso foi Klaus Barbie, que fez da sua residência boliviana uma verdadeira placa giratória para a distribuição de armas fabricadas pela Steyr. Com este e outros propósitos, Barbie conseguiu algo tão extraordinário como convencer o ditador René Barrientos a criar uma companhia de navegação, a Transmaritima Boliviana, num país sem mar, como é a Bolívia.

Em 1987, Barbie foi condenado a prisão perpétua por um tribunal francês. Por acaso ou por azar, os negócios da Steyr voltavam entretanto a achar-se em palpos de aranha e a firma voltou a falir em 1990, tendo sido desmembrada. Após uma série de peripécias a produtora de material de guerra resultante desse desmembramento foi em 2003 vendida à empresa norte-americana General Dynamics, a que hoje pertence.

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