"Uma mulher deixou a filha com os avós e, quando voltou, a bebé tinha sido mutilada"

por Catarina Marques Rodrigues - RTP
Uma mulher no Uganda mostra as lâminas usadas para executar a mutilação genital feminina James Akena/Reuters

Em Portugal terão sido mutiladas mais de 6500 mulheres. A maioria são guineenses. O corte dos órgãos genitais externos acontece para a "pureza" da mulher. Inês Leitão, autora do documentário "Este é o meu corpo", conta o que ouviu sobre o ritual.

A prática consiste no corte do clitóris e/ou dos lábios vaginais. Acontece a sangue frio e é executada com uma navalha, com uma lâmina ou com um pedaço de vidro. Chama-se mutilação genital feminina e acontece também em Portugal. O nome mais comum é "fanado", ato executado pelas "fanatecas", mulheres imcumbidas de excisar as meninas e raparigas.

O fenómeno da mutilação genital feminina em Portugal é o assunto do documentário "Este é o meu corpo", assinado por Inês Leitão. Foram dois meses de gravação e edição mas foram muitos mais de recolha de testemunhos, estatísticas e depoimentos do lado das instituições políticas, da saúde ou da justiça. Inês Leitão diz que o seu objetivo era criar uma "linha de conhecimento" sobre o fenómeno e "deixar um registo para memória futura sobre o que aconteceu em termos de mutilação genital feminina em Portugal".
Esta segunda-feira assinala-se o Dia para a Tolerância Zero Contra a Mutilação Genital Feminina.
Apesar de a prática ser originária de países como a Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e o Senegal, também acontece em outros países quando as comunidades praticantes viajam ou se instalam nesses mesmos locais. Portugal recebe comunidades de países onde a prática ainda existe e, por isso, é um país de risco, nota Inês Leitão. É a partir dos números da imigração dessas comunidades em Portugal que se faz a estimativa de quantas meninas terão sido excisadas por cá. Estima-se que em Portugal já tenham sido mutiladas 6756 mulheres.

Inês Leitão socorreu-se do apoio de uma instituição para conseguir falar com três mulheres em Portugal que passaram pela prática. As três são guineenses. Uma delas contou a Inês que, até hoje, não consegue esquecer-se da música que estava a tocar no momento em que o fanado aconteceu. 

Outra foi mutilada e não queria que o ritual se repetisse com a sua filha. Mas o ato acabou por acontecer à sua revelia. A família foi passar férias à Guiné e, um dia, a menina ficou com os avós. Tinha três meses. Foi aí que a mutilação aconteceu. "Ela nunca perdoou isso à família", conta Inês, e hoje "está em pânico porque está a preparar-se para contar à filha o que aconteceu. A rapariga tem agora 16 anos".

 


Na base deste ritual está a ideia de que as meninas ficam "mais puras" e "mais preservadas" depois dele. "Há a ideia de que as mulheres mutiladas são menos mexidas, não procuram tantos relacionamentos", explica Inês.
Nada no Corão diz que a mulher tem de ser mutilada
Há também a questão cultural e religiosa, sobretudo ligada ao Islão. "Acredita-se que tem a ver com o Corão (livro sagrado do Islão). Mas não há nada no Corão que diga que a mulher tem de ser mutilada", nota a autora de "Este é o meu corpo"."Uma das mulheres ficou interessada em falar mas depois o marido proibiu-a de participar"

As consequências do ato passam pela ausência de prazer sexual, mais probabilidade de contrair infeções sexualmente transmissíveis, problemas urinários, fissuras e partos mais dolorosos.

Um dos objetivos de Inês é mostrar que Portugal tem respostas para cuidar das mulheres que foram mutiladas. O documentário contou com a colaboração da secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Catarina Marcelino, que garante em entrevista que a luta contra a mutilação gential feminina "é um compromisso deste governo". A saúde também conta: "Porque é o nosso Sistema Nacional de Saúde que as acolhe e que lhes dá resposta. Estas mulheres que têm hoje 30, 35, 40 anos, têm, de saber que há meios para cuidar delas", sublinha.

 Em relação ao conhecimento deste fenómeno, há contrastes. Por um lado, houve muita gente a perguntar "o que é que era exatamente a mutilação, quem é que fazia, como é que se fazia" quando Inês contava o trabalho que está a fazer. Por outro lado, "há muitas mulheres cá em Portugal que têm trabalhado nesta área, algumas que fazem parte de associações, como a Carla Martingo, a Mónica Ferro e a Alice Frade", refere.

Documentário pronto, qual é o objetivo final? "Para mim, se servir para preservar a vida de uma mulher ou de uma criança, já valeu a pena. A mulher tem direito ao seu corpo".

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