Autonomia do Parlamento Europeu terraplanada pelo Tratado Transatlântico

por RTP
Francois Lenoir, Reuters

Parece que os portugueses, como os europeus, da esquerda mais encostada à esquerda incluída, poderão deixar de ter razões para temer o Tratado Orçamental imposto desde Bruxelas. O que aí vem é outra coisa. O que está em jogo é a abertura às grandes multinacionais (americanas) e a possibilidade de estas “trabalharem” propostas legislativas antes mesmo que os textos cheguem ao escrutínio dos eurodeputados no Parlamento Europeu. A palavra-chave para derrubar o contraforte democrático europeu é “cooperação para a regulamentação” (regulatory cooperation).

De acordo com um documento que caiu nas mãos do jornal britânico Independent e do grupo activista Corporate Europe Observatory (CEO) - que trabalha sobre e procura expor os efeitos do lobby das grandes corporações - as negociações do TTIP (Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimento) atingiram a fase em que num futuro mais ou menos próximo uma comissão não-eleita terá o poder para decidir em que áreas deverá existir cooperação entre a União Europeia e os Estado Unidos, deixando à margem os Estados-membros da União e o próprio Parlamento Europeu.

O documento aparece fruto de uma fuga das reuniões secretas que vêm decorrendo nos últimos anos entre norte-americanos e europeus sobre o desenho final do TTIP, uma parceria que visa harmonizar as regras de comércio entre os dois lados do Atlântico - muito a reboque de outros tratados que estão também a ser trabalhados pelos Estados Unidos com países da Ásia e do Pacífico.

Uma cooperação que visa promover as trocas comerciais e o crescimento dos Estados Unidos e da União Europeia, sustentam os seus autores. Um sem número de perigos nas áreas alimentar, da saúde, da banca, do comércio e do ambiente, na perspectiva dos críticos.

“A fuga de informação confirma totalmente os nossos maiores receios acerca do TTIP. Trata-se de entregar aos grandes negócios mais poder sobre um ampla variedade de leis e regulamentos. Na verdade, os lobistas das empresas foram ouvidos e registados a afirmar que a sua pretensão é ajudar a escrever as leis conjuntamente com os governos. E isto não é uma adenda ou um pormenor do TTIP, é absolutamente central no acordo”, alerta Nick Dearden, diretor do grupo Global Justice Now.

Dearden considera assustador esse cenário em que os Estados Unidos venham a ter o poder para fazer emendas e adendas às regulamentações europeias antes mesmo que políticos eleitos tenham a possibilidade de as debater.
A última palavra é a primeira?
O documento que saltou da mesa de negociações e chegou às mãos do CEO diz respeito ao capítulo das negociações que versa sobre a cooperação para a regulamentação. Os responsáveis europeus dizem que se trata apenas de simplificar processos.

O CEO adverte no entanto que se está a montar uma teia que de futuro tolherá qualquer iniciativa da União Europeia prejudicial aos interesses norte-americanos. A caminho, avisam, está a abertura de um corredor para as grandes multinacionais americanas no sentido de poderem avançar com “propostas substanciais” para a agenda de Bruxelas e das agências (reguladoras) dos Estados Unidos.

O CEO adverte para a realidade que está agora a ser planeada à porta fechada, um futuro em que os reguladores americanos (muito mais liberais em termos de segurança e de certificação científica dos que os europeus) possuirão um “papel inquestionável” na prática legislativa de Bruxelas e de Estrasburgo.

É nesse sentido que um dos investigadores do CEO, Kenneth Haar, considera que “abrir a porta à influência dos grandes negócios”, vergada a essa determinação da UE e dos Estados Unidos “para colocar grandes negócios no centro da tomada de decisão” constitui uma verdadeira ameaça à democracia.

Bruxelas defende-se, entretanto. Declarou um porta-voz da Comissão Europeia que “as acusações são infundadas e não estão refletidas na proposta da UE que procura simplificar as regras para os seus exportadores. O texto que visa a cooperação para a regulamentação será publicado em breve para que todos percebam que esta chamada análise é completamente falsa, apresenta uma visão parcial do trabalho da Comissão Europeia e ignora a realidade dos documentos da UE”.
TTIP – que é

O TTIP remete para um assunto particularmente sensível, o Tratado Transpacífico de Comércio Livre, que está para já remetido para o segredo das grandes multinacionais desde 2008. Trata-se de um negócio de biliões que passará a determinar os termos das trocas comerciais entre as maiores companhias do mundo, abolindo taxas e barreiras alfandegárias. A pressão é enorme para a “adesão” da União Europeia. O Presidente Barack Obama já assinalou que o acordo é bom para os trabalhadores norte-americanos: “Podemos ajudar as nossas empresas a vender mais produtos e serviços em todo o mundo”.

A história começa com a construção do Tratado de Comércio do Pacífico, um acordo negociado de forma quase secreta ao longo de mais de meia década entre os Estados Unidos, Japão e outros dez países do Pacífico e que visa suprimir as barreiras alfandegárias e regulamentares entre os norte-americanos e a União Europeia.

A propriedade intelectual sobre medicamentos biológicos, importações de produtos lácteos da Austrália e Nova Zelândia para o Canadá e de peças de automóveis japonesas para a América do Norte terão sido os pontos mais sensíveis da negociação.

Trata-se de uma parceria global que – assinalam os detratores – conduzirá à desregulação generalizada e a condicionamento jurídico dos governos. Em causa está um novo e extenso manual de regulamentação que deverá liberalizar um terço do comércio mundial.
"Em nome das multinacionais"

Tal como o acordo com o Pacífico, também o acordo com a União Europeia - cujas negociações arrancaram em 2013 - visa suprimir barreiras alfandegárias e regulamentares entre os Estados Unidos e o Velho Continente. Os opositores temem a desregulação generalizada e um recuo do espaço de manobra dos governos.

Uma das várias acções de protesto de que vem sendo alvo o TTIP na Europa, organizada em Outubro passado pelo coletivo “Stop TTIP”, reuniu mais de três milhões de assinaturas para exigir a cessação imediata de negociações à Comissão Europeia.

“Num ano, reunimos o triplo das assinaturas necessárias para que seja admissível uma iniciativa de cidadania, segundo os tratados da União, o que demonstra a dimensão da crescente oposição europeia ao TTIP”, afirmou Susan George, membro do comité cidadão da ICE (Iniciativa de Cidadania Europeia).

O gabinete de Bruxelas apressou-se contudo a colocar a queixa no cesto dos papéis. Apesar de haver desde 2012 a possibilidade de qualquer cidadão europeu participar na elaboração das políticas da União e “obrigar” a Comissão Europeia a apresentar propostas legislativas - desde que recolhidas pelo menos um milhão de assinaturas de sete dos 28 Estados-membros - a Comissão fez saber que o tema não estava dentro do seu “campo de competência (por não ser) uma apreciação política”.
Maçães e a assinatura portuguesa

Bruno Maçães foi apresentado em finais de outubro de 2014 como o subscritor de uma carta dirigida ao presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, documento firmado a 20 de outubro em que é defendida a possibilidade de cenários de arbitragem jurídica que fogem aos tribunais europeus para lidar com as parcerias transatlânticas.A ala mais social dos políticos europeus teme que assuntos relacionados com os direitos básicos dos cidadãos de determinado país possam vir a ser cilindrados por negociações leoninas das grandes multinacionais a troco da implantação de negócios num território que perdia soberania.

Em causa estava a cláusula ISDS (sigla para arbitragem Estado-investidor), mas na mente dos subscritores estaria já a Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimento (TTIP) e a ideia de que aquele seria o caminho mais curto para eliminar barreiras nas relações entre a Europa e os Estados Unidos.

O então secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães, declarava numa reação registada pelo jornal Público que “para Portugal a questão crucial é eliminar a nossa desvantagem competitiva na área do investimento. Só três Estados-membros da UE não têm qualquer acordo de proteção de investimento com os Estados Unidos. Portugal é um deles. É, por isso, uma questão de mercado interno e de criação de condições iguais para todos”.
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