O padre António Vieira (1608 – 1697), homem de ação, diplomata e um dos mais brilhantes cultores das letras portuguesas, permaneceu, casualmente, durante dois meses na ilha Graciosa.
Corria então o ano de 1654 e o já famoso padre jesuíta era um dos passageiros de um cargueiro (carregado de açúcar) que regressava a Lisboa vindo do Brasil de onde partira a 17 de Junho daquele ano. Vieira vinha em missão diplomática cujo objetivo era defender, junto do rei D. João IV, os direitos dos indígenas, escravizados pela ganância e pela cobiça dos colonos portugueses. Após cerca de dois meses de viagem o navio foi apanhado, ao largo da ilha do Corvo, por uma violenta tempestade: começou por perder uma das velas, depois partiram-se os mastros e, adernado, acabou por se endireitar, embora ficasse à deriva, ingovernado…
Cuidando que a embarcação não resistiria à tormenta, o padre António Vieira concedeu a todos os passageiros e tripulantes a absolvição geral e, na iminência do naufrágio, elevou a voz, bradou aos céus, e, segundo as crónicas, terá assim orado:
“Anjo da Guarda, das almas do Maranhão, lembrai-vos de que vai este navio buscar o remédio e salvação delas. Fazei agora o que podeis e deveis, não a nós, que não o merecemos, mas àquelas tão desamparadas almas que tendes a vosso cargo; olhai que aqui se perdem connosco”.
Depois pediu aos 41 companheiros de viagem e de infortúnio que prometessem à Virgem Maria rezar-lhe diariamente um terço, se escapassem. Amainado o temporal, apareceu no horizonte um navio corsário holandês que, como seria de esperar, saqueou o cargueiro; mesmo assim, os piratas recolheram os náufragos, sacaram-lhes roupas e bens e abandonaram-nos à sua sorte na ilha Graciosa.
Ali desembarcado, o padre António Vieira obteve auxílio dos religiosos locais, que não só alimentaram e abrigaram os sobreviventes da tormentosa viagem, como financiaram a viagem de um enviado a Amsterdão, incumbido de resgatar os livros e outros papéis pilhados pelos corsários holandeses. Da Graciosa os companheiros de Vieira rumaram à Terceira, e, dias depois, embarcaram rumo a Lisboa.
Durante a sua permanência de 61 dias na Graciosa, o padre Vieira consagrou-se à escrita, tendo deixado na ilha a devoção do Terço do Rosário. Sabe-se que, pelo menos, fez um sermão na que é hoje a igreja matriz de Santa Cruz da Graciosa.
O célebre orador deixou a “ilha branca” embarcando para a ilha Terceira, onde ficou instalado no Colégio dos Jesuítas. Aí permaneceu uma semana, tendo pregado várias vezes na Sé de Angra. Depois passou à ilha de São Miguel, onde ficou durante mais algum tempo, escrevendo e proferindo sermões. Completaria posteriormente a viagem até à capital, em Novembro de 1654, a bordo de um navio inglês e, curiosamente, após atravessar nova tempestade.
Post Scriptum: Na onda de indignação gerada pelo frio e lento assassínio do afro-americano George Floyd por um polícia, no dia 25 de maio, em Minneapolis, no estado norte-americano de Minnesota, vive-se atualmente um fenómeno global de derrube ou mutilação de estátuas de figuras relacionadas com o racismo, a escravatura e o colonialismo. Tal desdita abateu-se sobre a estátua do padre António Vieira que, no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, apareceu vandalizada com manchas de tinta vermelha e uma inscrição pretensamente anticolonialista. Quem o fez desconhecia que Vieira, bisneto de uma mulher negra, defendeu encarniçadamente os direitos dos índios do Brasil. Não se pode apagar a História e a estupidez não tem limites…