Alfonso Cuarón e Yalitza Aparicio durante a rodagem de


joao lopes
13 Dez 2018 17:25

Descobrimos, fascinados, o filme "Roma", de Alfonso Cuarón. Que é como quem diz: em tempos de proliferação de heróis digitais, vale a pena continuar a filmar corpos vivos, gente com alma.

Seja como for, face às suas singularidades dramáticas, poéticas e visuais (estamos perante uma admirável fotografia a preto e branco, assinada pelo próprio Cuarón), podemos perguntar: porque é que o cineasta que fez essa magnífica epopeia espacial que é "Gravidade" (2013), se lança, agora, na aventura de revisitar memórias mexicanas do começo da década de 1970 e, mais especificamente, encenar a vida de uma família do bairro de Roma, na Cidade do México?

Em primeiro lugar, Cuarón está a revisitar a sua história pessoal, refazendo esse tempo através de uma visão filtrada pelos olhares das crianças e também, de modo fundamental, pela existência das criadas da família, índias, de origem mixteca. Depois, porque projecto tão especial — e, sobretudo, tão pessoal — encontrou o seu espaço "natural", não no contexto dos grandes estúdios com que Cuarón já trabalhou ("Gravidade" tinha chancela Warner Bros.), mas sim na agenda de produção da Netflix.




Sinais dos tempos: triunfando como plataforma de "streaming", com mais de 130 milhões de assinantes em todo o mundo, a Netflix impôs-se como invulgar máquina de produção — na sua condição de objecto com fortíssimas marcas autorais, "Roma" é um símbolo exemplar da sua evolução, a ponto de a Netflix o querer colocar na corrida aos Oscars (com toda a legitimidade, entenda-se). Daí a novidade tão comentada nas últimas semanas: "Roma" surge também nas salas escuras (se tal não acontecesse, os regulamentos da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood fariam com que o filme não fosse nomeável).

Convenhamos que o lançamento comercial de "Roma" acaba por expor uma contradição, bem reveladora das tensões industriais, artísticas e comerciais destes tempos. A saber: este é um genuíno objecto de cinema que, pelas suas maravilhas visuais e também pela sofisticação do seu som, só pode ser totalmente admirado numa tradicional sala de cinema.

Cuarón consegue revitalizar a noção mais clássica de melodrama familiar, sendo particularmente delicado e subtil o modo como sustenta uma dicotomia visceral: por um lado, as relações entre os membros da família e os criados envolvem hierarquias muito claras que, em boa verdade, todos integraram; ao mesmo tempo, por outro lado, as criadas — e, em particular, Cleo, interpretada pela admirável Yalitza Aparicio — desempenham funções eminentemente maternais face às crianças.

Eis um filme, enfim, em que a vibração do espaço (notável aproveitamento do formato scope) e a complexidade do tempo (os momentos de contemplação são mais emocionantes e vertiginosos que as velocidades postiças de muitos super-heróis) nos remetem para um primitivo amor do cinema como linguagem sempre enredada com o factor humano. Que isso aconteça através da Netflix, eis também a revelação — esperemos que quem produz e difunde o cinema descubra as maravilhas de "Roma" e, na defesa dos seus próprios interesses, páre um pouco para pensar.

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