Aleksei Kravchenko em


joao lopes
29 Ago 2019 21:16

O rosto dilacerado de Aleksei Kravchenko é um daqueles acontecimentos visuais e dramáticos que basta (aliás, bastou) para lhe garantir um lugar definitivo na história do cinema. Ele interpreta o jovem Flyora que, num lugar remoto da Bielorrúsia, em 1943, contempla de forma muito directa um massacre consumado pelo exército nazi — Flyora é a figura central do prodigioso "Vem e Vê", muitas vezes citado como "o melhor filme de guerra de todos os tempos".

Agora reposto em impecável cópia restaurada, "Vem e Vê" é uma produção da URSS datada de 1985, assinada por Elem Klimov (1933-2003). E vai ficar também, desde já, como um dos acontecimentos vitais deste nosso ano cinematográfico, tantas vezes contaminado pelo ruído ensurdecedor das aventuras de super-heróis, menosprezando a variedade humana, temática e estética do cinema. Para simplificarmos, diremos: "Vem e Vê" é um filme que aposta em dar conta de todas as dimensões da experiência humana, mesmo para além da fronteira radical do horror.

 



Aliás, convenhamos que a inscrição de "Vem e Vê" na categoria de "filme-de-guerra" pode ser francamente insuficiente, porventura equívoca. Na verdade, não estamos perante um descendente do género tradicional de Hollywood (em que, obviamente, também encontramos proezas admiráveis), como também não fará muito sentido confundi-lo com algumas epopeias melodramáticas da produção soviética pós-Estaline ("Quando Passam as Cegonhas", de Mikhail Kalatozov, lançado em 1957, poderá servir de
modelo).

A realização de Klimov constitui uma apoteose radical de um realismo que envolve, precisamente, todas as convulsões que, na fúria da história, contribuiram para o apagamento da dimensão humana. Nesta perspectiva, talvez se possa dizer que "Vem e Vê" se coloca no coração de uma eterna questão de filosofia cinematográfica. A saber: como representar a violência que parece desafiar a própria possibilidade de representação? Em 2019, em tempos de tantas comunicações aceleradas e superficiais, essa continua a ser uma pergunta, de uma só vez estética e moral, que importa enfrentar.

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