21 Fev 2023 12:09

No inicio do novo século, no ano 2000, a cidade de Mexed, no nordeste do Irão, um local sagrado de peregrinação para os muçulmanos xiitas, tornou-se noticia com o caso de um assassino em série, autor da morte de mais de 10 prostitutas.

O caso serviu de inspiração ao realizador Ali Abasi para o filme “Holy Spider”, que integrou a competição oficial do festival de Cannes 2022. Segundo o cineasta, a história do assassino não lhe despertou grande interesse, até perceber que havia quem o defendesse: "acho que se transformou em algo interessante para mim quando certos segmentos da sociedade iraniana, a imprensa e as autoridades, começaram a falar deste homem como uma espécie de herói. Alguém que se sacrificou pelo bem da sociedade".

Este foi o pretexto para Ali Abasi abordar uma face menos evidente do Irão: "transformou-se em algo diferente do que apenas um louco que matava mulheres e passou a ser uma história sobre uma sociedade assassina".

O filme acompanha o trabalho de uma jornalista, interpretada por Zar Amir-Ebrahimi, que tenta investigar os crimes, mas que se depara com vários entraves colocados pelas autoridades policiais e religiosas, porque o autor das mortes é visto como um herói a cumprir a missão divina de eliminar mulheres pecadoras.

Vencedora da palma para melhor actriz, o desempenho de Zar Amir seria provavelmente punido de forma severa, tendo em conta os actuais códigos de conduta impostos no Irão. Mas a actriz radicada fora do país, responde com firmeza que não pensa sequer nas consequências, porque já não poderá voltar a casa. Por isso, fica satisfeita pela oportunidade de fazer um filme sem censura.

Apesar da apresentação do filme ter coincidido com uma iniciativa na passadeira vermelha do Festival, em defesa dos direitos das mulheres, o realizador Ali Abasi insistiu que “Holy Spider”, não é um filme sobre a condição da mulher iraniana, mas um filme sobre seres humanos abandonados por uma sociedade hipócrita e misógina.

"Não sei qual é a história real destas mulheres. Acho que a história real é que são seres humanos. Que viviam em pobreza extrema. Que casam aos 14 anos. Têm dois filhos aos 23. Que andam nas ruas aos 19. E quando chegam aos 35, perdem os dentes todos. Isso é a história real. Será que falamos disto de forma satisfatória e completa? Acho que mostramos uma parte. Mas volto a dizer, que este filme não é sobre a condição da mulher no Irão, embora fosse um óptimo filme!", esclarece o realizador.

Depois de ter contado uma estranha história de amor no filme “Na Fronteira”, que em 2018 venceu em Cannes o prémio da secção Un Certain Regard, Ali Abasi voltou ao festival com um filme noir, como o próprio o classifica.

Em exibição nos cinemas portugueses, “Holy Spider” tem uma marca estética muito apurada e envolvente. É uma obra pioneira em várias dimensões, pela forma como expõe as fragilidades da sociedade iraniana a partir de um caso real que as autoridades transformaram na história de um homem motivado por um sentido de justiça divina.

  • Lara Marques Pereira
  • 21 Fev 2023 12:09

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