Joaquin Phoenix, aliás, Joker — mascarando a sua solidão


joao lopes
3 Out 2019 0:44

Há qualquer coisa de revelador no facto de, no ano da graça de 2019, surgir um filme como "Joker". Consumando uma dupla proeza: ser gerado no universo dos super-heróis da BD (neste caso, da DC Comics) e, mais do que isso, no coração de Hollywood (trata-se de uma produção da Warner), ao mesmo tempo demarcando-se das rotinas que têm anquilosado a esmagadora maioria dos últimos títulos (quer da DC, quer da Marvel) enraizados neste mesmo universo.

Afinal, o reconhecimento de muitas formas de esgotamento (narrativo, técnico, simbólico, etc.) de tais filmes estava longe de ser um tema "inventado" por alguns discursos críticos… Como se prova, profissionais como Todd Phillips e Joaquin Phoenix — realizador e actor principal de "Joker", respectivamente — foram conduzidos a uma reflexão muito semelhante, a ponto de criarem um dos mais prodigiosos filmes este ano saído dos grandes estúdios americanos.
Lembrar que Joker existe como sombra burlesca de Batman é o mínimo que importa dizer a propósito do lançamento desta verdadeira biografia fantasmática. Aliás, a sua matriz dramática foi exemplarmente definida, há precisamente 30 anos, por Jack Nicholson no "Batman" (1989) de Tim Burton.

Phoenix é um herdeiro directo dessa performance, mesmo se a trabalha através de um fabuloso desvio: em vez do clown provocador, para quem o crime é apenas a forma suprema de espectáculo, deparamos com uma personagem cuja vocação circense não esconde, antes intensifica, a tragédia de uma existência eminentemente solitária — agora, o Joker é um ser à deriva, assombrado por dramas (familiares, profissionais, sociais) que o tornam singularmente próximo do… homem comum.
Há, por isso, um paradoxo muito vivo, habitado por uma angústia sem nome, no Joker de Phillips: por um lado, reconhecemo-lo como produto de um universo de artifício e espectáculo (a que, obviamente, a memória mitológica da BD não é estranha); por outro lado, as violentas atribulações da sua existência conferem-lhe a dimensão de vulnerável marioneta de um tempo em que reduzimos o social a um fenómeno etéreo, sobretudo televisivo.
Entenda-se: a referência à televisão não é, de modo algum, uma especulação "teórica", muito menos abstracta. Justifica-se como expressão muito directa da importância que, no interior do filme, adquire a relação do (anti-)herói com Murray Franklin (Robert De Niro), o apresentador de televisão que, afinal, atribuiu a Arthur Fleck o cognome de Joker.

Enfim, será preciso acrescentar que tudo isto acontece através da (re)valorização muito física do trabalho do actor? Phoenix é um prodígio de emoção e comoção, não através das perversões digitais que têm anulado alguns grandes actores (veja-se o triste desaparecimento de Robert Downey Jr. sob as vestes do, afinal, bem chamado "homem-de-ferro"), antes celebrando o corpo como entidade suprema de artifício & verdade — essa conjugação, entre a decomposição do real e o seu contundente retorno, chama-se cinema.
E como cinema que é, há nele um gosto — e, à sua maneira, um método — de acarinhar os mais radicais valores artísticos, dinâmicos e plurais, que, mesmo contra as rotinas dos super-heróis, continuam a sustentar a glória de Hollywood. Convocando, inclusive, memórias do mais nobre teatro musical dos EUA, como é o caso da canção "Send in the Clowns" (à letra: "mandem entrar os palhaços"), composta pelo grande Stephen Sondheim para "A Little Night Music" (1973) — no filme, escutamos a versão imaculada de Frank Sinatra.

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