joao lopes
4 Fev 2016 23:53

A propósito do novo filme de Quentin Tarantino, "Os Oito Odiados", tem-se falado muito do próprio Tarantino, do seu regresso ao "western" (depois de "Django Libertado", em 2012), da sua capacidade para conceber uma ficção que evolui como uma máquina de impecável rigor dramatúrgico, sabendo sopesar os elementos em jogo — as coisas evidentes e os factores de surpresa.

É justo que assim seja: estamos perante o oitavo filme de um cineasta/argumentista que tem sabido arquitectar uma obra pessoalíssima, investindo grandes referências do cinema clássico ("western", "thriller", filme de guerra) para, depois, as tranfigurar em coisa muito sua, susceptível de gerar um espectáculo único, inconfundível, inimitável — será, diz ele, o seu antepenúltimo filme, já que "dez filmes" é a meta que para si próprio definiu…
Apesar disso — corrijo: precisamente por causa disso —, vale a pena dizer que o cinema de Tarantino sempre foi um cinema de actores. No sentido mais visceral que tal pode implicar. A saber: uma deambulação amarga pelos sobressaltos da condição humana, encarnados por actores, apaixonadamente e milimetricamente dirigidos. Como o título indica, temos aqui oito magníficos. São eles:
Samuel L. Jackson, Kurt Russell, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Demián Bichir, Tim Roth, Michael Madsen e Bruce Dern.
Lembrar que eles se reunem num cenário único e que aquilo que parece ser um encontro acidental se vai transformar num ritual de muitas ambivalências e máscaras, imaginação e sangue, eis o que importa fazer, mas não é o essencial — de facto, os filmes não são a sua sinopse… Acontece que rapidamente sentimos que estamos perante um genuíno exercício teatral, afinal retomando uma obsessão que vem desde "Cães Danados" (1992).

A teatralidade de Tarantino não é, obviamente, uma qualquer forma de "transcrição" do tradicional espaço cénico do teatro. À maneira de autores tão diversos como Vincente Minnelli (1903-1986) ou Manoel de Oliveira (1908-2015), Tarantino pressente nas suas coordenadas uma hipótese fascinante de transfiguração do próprio cinema — e das suas linguagens.
Nesta perspectiva, "Os Oito Odiados" (o título "The Hateful Eight" deveria ter sido traduzido por ‘Os Oito Odiosos’) mostra-se capaz de congregar a mais primitiva duplicidade do "western" (e, em boa verdade, de vários outros géneros clássicos de Hollywood): é uma saga de paixões violentas, pontuada de revelações e traições, e também uma evocação simbólica de um tempo concreto — o pós-Guerra Civil — em que a identidade americana enfrenta o desafio dos seus próprios fantasmas (observe-se, a esse propósito, a questão da carta de Abraham Lincoln que vai assombrando as personagens e, afinal, o corpo do próprio filme).
Isto sem esquecer, claro, que Tarantino e o seu director de fotografia, o magnífico Robert Richardson, apostaram em recuperar a película de 70mm, conferindo às imagens de "Os Oito Odiados" (mesmo nos países como Portugal, onde apenas são distribuídas cópias digitais) uma intensidade quase hiper-realista que, de facto, aponta para um incontornável dado cultural e comercial: na idade da Internet e das partilhas mais ou menos (i)legais, há uma gloriosa verdade do cinema que pertence apenas — sublinho: apenas — ao espaço ritualizado da sala escura.

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