Delroy Lindo em


joao lopes
25 Jun 2020 18:42

Eis uma constatação rudimentar: à semelhança de muitas outras áreas profissionais, também no cinema a situação de pandemia está a ser vivida através de muitos paradoxos e contrastes.

Pense-se, por exemplo, no novo filme de Spike Lee: "Da 5 Bloods" chegou a ser antecipado como uma entrada forte em Cannes, extra-competição, isto porque Spike Lee seria o presidente do júri (depois de ter ganho o Grande Prémio, em 2018, com "BlacKkKlansman"). Ao mesmo tempo, a sua saga — um grupo de veteranos do Vietname que, cerca de 40 anos depois do fim da guerra, regressam ao país na procura de um "tesouro" escondido — possui todas as características de um genuíno objecto de cinema para ser descoberto no grande ecrã de uma sala escura. Enfim, no actual ziguezague entre as dificuldades das salas e o "boom" das plataformas de streaming, importa sublinhar que estamos perante um dos trunfos mais recentes da produção Netflix.
Dito de outro modo: "Da 5 Bloods" está disponível na Netflix (com o subtítulo "Irmãos de Armas") e o mínimo que se pode dizer é que, com ou sem COVID-19, com ou sem Festival de Cannes, com ou sem salas de cinema a funcionar, se trata de um dos maiores acontecimentos cinéfilos do ano de 2020.

Os 5 "Bloods" a que o título se refere são afro-americanos que cumpriram missões no Vietname: um morreu na guerra (Chadwick Boseman), os outros quatro são os protagonistas da viagem contemporânea (Delroy Lindo, Clarke Peters, Norm Lewis e Isiah Whitlock Jr.).
Dizer que se trata de uma contundente revisão crítica do envolvimento americano no Vietname e, em particular, das experiências trágicas dos jovens soldados negros é o primeiro e fundamental vector que importa sublinhar. Não por acaso, a memória de "Apocalypse Now" (1979), inclusive através das "Valquírias" de Wagner, perpassa no trabalho de Spike Lee como uma homenagem e, mais do que isso, como um fio narrativo — de uma só vez histórico e simbólico — que ele retoma.
O certo é que "Da 5 Bloods" é mais do que uma crónica de guerra, aliás, tal como "Apocalypse Now". O que aqui desagua é um caudal de pensamentos e emoções, sinais do passado e factos do presente (incluindo a presidência de Donald Trump) que conferem ao filme o fôlego de uma epopeia de muitos contrastes.
Da dimensão de aventura sangrenta à vibração de uma tragédia clássica (veja-se e ouça-se a dilacerada personagem de Delroy Lindo), este é um filme que corre mesmo o risco de se apresentar como um produto formalmente híbrido: há nele a intensidade de um primitivo filme de guerra, mas também a urgência de um relatório de imagens e sons sobre um país a enfrentar, ontem como hoje, as suas mais radicais contradições internas.
Com "Da 5 Bloods", Spike Lee conseguiu criar um objecto que comete a proeza de existir como filme para as salas, sem deixar de se adequar aos modos de percepção e interpretação que decorrem da nossa condição de espectadores caseiros — são raros os cineastas contemporâneos a enfrentar tal dicotomia, filmando, não apesar dela, mas através da elaborada conjugação das suas componentes.

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