Sergei Polunin e Laetitia Dosch: por dentro do labirinto da paixão


joao lopes
30 Out 2021 23:51

A indiferença, para não dizer o menosprezo, com que muitos espectadores encaram, hoje em dia, a noção de melodrama é reveladora do abandono dos valores cinéfilos mais clássicos. Afinal de contas, de "O Lírio Quebrado" (1919), de D. W. Griffith, a "As Pontes de Madison County" (1995), de Clint Eastwood, estamos a falar de uma das mais nobres matrizes narrativas da história do cinema.

Pois bem, o mínimo que se pode dizer de "Uma Paixão Simples", de Danielle Arbid, é que se trata de um belíssimo exemplo desse paradoxo que faz a actualidade e a intemporalidade da escrita melodramática. Porque este é, de facto, um filme deste nosso tempo atribulado — e também um filme que está para lá das fronteiras do nosso tempo.

Baseado no romance homónimo de Annie Ernaux, publicado em 1991 (edição portuguesa: Livros do Brasil), "Uma Paixão Simples" é um objecto deste tempo porque nele encontramos uma história com todas as marcas do nosso presente, centrada nas relações entre uma mulher e um homem — a mulher (Laetitia Dosch) deseja ardentemente o homem (Sergei Polunin) e, como ela reconhece, passa a viver os seus dias à espera dele, num cenário passional em que todos os gestos de ternura são sexuais, todo o sexo é afectuoso e, nessa medida, radical; ele responde-lhe, e corresponde-lhe, intensificando o próprio desejo que o identifica.

Mas "Uma Paixão Simples" não depende dos temas e das ideologias do nosso tempo. Não se trata de fazer um filme "sobre" o feminino e o masculino, antes de contar uma história em que todas as fronteiras se diluem porque é esse, precisamente, o poder da paixão encenada por Danielle Arbid — trata-se de uma história tão particular e irredutível que, no limite, parece dispensar a história colectiva e social em que está inserida.

O resultado é um filme francamente fora de moda (devemos até usar o plural: fora das modas), empenhado, não em proclamar grandes abstracções sobre as mulheres e os homens, antes desenhar um retrato directo, convulsivo, daquela mulher e daquele homem — com a câmara colada aos corpos e às palavras dos dois magníficos intérpretes, o resultado é uma preciosidade humana e cinematográfica.

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