O real é sempre surreal
"A Hipótese do Quadro Roubado" (1979): pintura & cinema segundo Ruiz

Raúl Ruiz  

O real é sempre surreal

Com a morte do chileno Raúl Ruiz, desaparece um dos mais obsessivos exploradores das tensões entre viver e representar, imagem e imaginação: ao longo de 48 anos, realizou mais de uma centena de filmes.

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No seu derradeiro filme, "Mistérios de Lisboa" (2010), Raúl Ruiz deixou uma síntese admirável da vocação mais radical do seu cinema. Admirável e paradoxal: por um lado, há na sua adaptação camiliana o gosto pelo detalhe social e pela espessura da memória histórica; por outro lado, essa base realista não exclui, antes parece atrair, um delírio surreal perante o qual todas as fronteiras, psicológicas ou dramáticas, vacilam.

Provavelmente (aliás, seguramente), o facto de ter mantido uma actividade continuada e obsessiva (mais de uma centena de filmes ao longo de 48 anos de actividade), nem sempre favoreceu os melhores resultados. Mas é um facto que esse impulso de continuar a filmar era vital: Ruiz encenava a vida vivida como qualquer coisa que tendia para todas as vidas imaginadas.

O fabuloso "A Hipótese do Quadro Roubado" (1979), fotografado a preto e branco pelo genial Sacha Vierny, pode resumir a energia interior do universo de Ruiz: tratava-se de discutir os poderes da arte e, mais especificamente, o modo como a pintura é, de uma só vez, a confirmação do mundo e a seu vertiginosa reinvenção.

Títulos como "O Território" (1981), "A Cidade dos Piratas" (1983) ou "Genealogias de um Crime" (1997) podem simbolizar, em momentos diversos, o seu gosto pela exploração de narrativas que vão evoluindo como labirintos de conhecimento e desconhecimento. No limite, colocando o espectador perante a questão mais simples, e também mais radical: afinal, o que é isso de assistir à representação do mundo através de um filme?

Muitas vezes, a démarche criativa de Ruiz passou por formas singulares de relação com a literatura: "Mistérios de Lisboa" assim o testemunha, tal como, por exemplo, "O Tempo Reencontrado" (1999), apostando na tarefa (impossível?) de transpor Marcel Proust para cinema.

Perante a notícia triste da morte de Ruiz, valerá a pena não favorecermos nenhum sentimento mórbido ou determinista. Em boa verdade, toda a sua obra se apresenta habitada por um desconcertante humor: afinal, para ele, o real tem graça, sobretudo quando se transfigura no seu contrário.

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publicado 01:07 - 20 agosto '11

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