joao lopes
20 Jun 2021 2:24

A data de um filme não esclarece a sua identidade, mas há factos objectivos que importa não escamotear. No caso de "O Movimento das Coisas", de Manuela Serra, é inevitável começarmos por dizer que a sua chegada às salas de cinema ocorre 36 anos depois da sua conclusão…

Este é, de facto, um filme de 1985 que arrasta, por isso, uma certeza amarga: o cinema português continua a viver assombrado por percalços deste género — o problema da sua difusão colocava-se em 1985 e, como se prova, continua a ser assunto de reflexão em 2021.

Dito isto, creio que importa também sublinhar a irredutibilidade do objecto que, finalmente, temos à nossa frente. Assim, é verdade que existe uma tradição documental etnográfica no cinema português e face a "O Movimento das Coisas", o nosso primeiro impulso será o de inscrevermos a sua depurada beleza em tal tradição — não será um erro, mas parece-me que é manifestamente insuficiente.



Se há filmes que nos ajudam a repensar as fronteiras clássicas entre documentário e ficção, "O Movimento das Coisas" é um desses filmes. De que se trata, então? De uma deambulação por cenários da aldeia de Lanheses, na zona de Viana do Castelo, registando as tarefas quotidianas dos seus habitantes, alguns momentos da sua vida caseira e também, em particular, os seus rituais religiosos.

Tudo isso, podendo ser definido como documental, vai-se transfigurando em qualquer coisa de eminentemnte poético — como se cada quadro de vida fosse também uma ficção abstracta em que podemos contemplar um mistério que fica sempre por esclarecer. Daí o paradoxo fascinante: "O Movimento das Coisas" é uma memória de um tempo outro, sem que isso o impeça de ser um facto capaz de desafiar o nosso entendimento presente do próprio cinema como acontecimento e linguagem.

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