Ventura, filmado por Pedro Costa: um cinema que discute a transparência do real


joao lopes
4 Dez 2014 1:15

É bem verdade que, perante o cinema de Pedro Costa, em particular a sua trilogia do bairro das Fontainhas — "Ossos" (1997), "No Quarto da Vanda" (2000) e "Juventude em Marcha" —, talvez seja inevitável falarmos de uma dimensão documental.

Não tanto porque a classificação se adeque à imensidão do que vemos, antes porque sentimos um radical paradoxo: cada filme cola-se a uma realidade feita de sombras e sofrimento ("documentando-a"), ao mesmo tempo que vai derivando para qualquer coisa de transcendente.

O novo filme de Costa, "Cavalo Dinheiro" (distinguido no Festival de Locarno), aí está, como um prolongamento lógico de tal estratégia de mise en scène — uma verdadeira odisseia sobre uma dor muito portuguesa.
Por um lado, assistimos ao desenrolar da odisseia de Ventura, personagem emblemática de todo este universo, de algum modo perdido nos corredores (e num incrível elevador) de um estabelecimento hospitalar; por outro lado, a sua experiência vai-se transfigurando numa viagem que tem tanto de intimista como de cósmico.
Dizer que o cineasta constrói um testemunho, elaborado e raro, sobre um presente muito português é uma verdade — mas é uma verdade insuficiente. Porque, de facto, não se trata de fazer "sociologia" à maneira televisiva, confundindo as impressões do quotidiano com categorias universais (e moralistas) de conhecimento. Nada disso: este é também um cinema da mais pura experiência sensorial, em que se discute, ponto por ponto, a transparência do real.
No limite, a trajectória de Ventura coloca em jogo as nossas memórias históricas (a começar pelo 25 de Abril), revendo-as face à crueza de um tempo a que reconhecemos a pertinência amarga do presente.
"Cavalo Dinheiro" é a apoteose muito viva de um cinema que não abdica de um rigor que não pactua com a banalidade das ilusões mediáticas — nessa medida, Pedro Costa reafirma-se não apenas como uma personalidade ímpar do cinema português, mas também uma das figuras nucleares do mais fascinante cinema contemporâneo.

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