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Preservando as memórias cinéfilas

Centrado numa sóbria composição de Kristen Stewart, "Seberg - Contra Todos os Inimigos" recorda a figura de Jean Seberg, uma estrela precoce que, nos anos 60, foi objecto de vigilância do FBI — uma feliz aliança entre história e cinefilia.

Preservando as memórias cinéfilas
Kristen Stewart interpretando Jean Seberg — transparência e mistério
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 Preservando as memórias cinéfilas
Seberg - Contra Todos os Inimigos Jean Seberg (Stewart), conhecida atriz e apoiante do movimento pelos direitos civis, envolve-se com Hakim Jamal (Mackie), carismático ativista dos Black Panthers. O relacionamento rapidamente passa de político para romântico e desperta o interesse do FBI. Os agentes Jack Solomon (O’Connell) e Carl Kowalski (Vaughn) tudo fazem para documentar a relação. Jack torna-se obcecado e atraído pela ...

Estranha cegueira semiológica de alguns títulos portugueses: o filme "Seberg", sobre a actriz americana Jean Seberg (1938-1979) centra-se no período em que ela, em crescente e dramática vulnerabilidade psicológica, foi vigiada pelo FBI. Dito de outro modo: trata-se do retrato, pleno de comoção, de alguém que não sabe como se defender da invasão da sua privacidade... Ainda assim, foi-lhe acrescentado um subtítulo bélico, em tudo e por tudo alheio à personagem retratada: "Contra Todos os Inimigos".

Esta é, de facto, uma história em que a ingenuidade da protagonista se cruza com a sua militante defesa dos direitos dos afro-americanos, numa América (anos 60) marcada por muitas convulsões sociais e políticas. Depois de ter sido uma star muito precoce — graças a dois títulos dirigidos por Otto Preminger: "Santa Joana" (1957) e "Bom Dia, Tristeza" (1958) —, Seberg acabou por se transformar, ou ser transformada, em bode expiatório de uma nação com dificuldade em lidar com as suas contradições internas.

Dirigido por Benedict Andrews, a partir de um metódico argumento assinado por Joe Shrapnel e Anna Waterhouse, "Seberg" evita a solução fácil de reduzir a sua personagem central a uma vítima de um mundo de demónios. Assim, a complexidade emocional das suas vivências não exclui que alguém como Jack Solomon, um dos elementos do FBI que a vigia, seja encenado também como um ser humano que não se dilui numa abstracção simbólica ou psicológica.

Na composição de Seberg, Kristen Stewart consegue preservar um misto de transparência e mistério que não pode deixar de envolver as memórias cinéfilas da própria actriz, incluindo, claro, "À Bout de Souffle/O Acossado" (1959), o filme de Jean-Luc Godard que serviu de bandeira à Nova Vaga francesa.

E porque tais memórias existem num permanente ziguezague de imagens e pensamentos, vale a pena recordar Jean Seberg, ela própria, em "À Bout de Souffle", contracenando com Jean-Paul Belmondo, na emblemática cena dos Campo Elíseos em que apregoa o "New York Herald Tribune" — tempos passados, cinema sempre do presente.

Crítica de João Lopes
publicado 00:21 - 23 fevereiro '20

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