joao lopes
19 Jan 2017 2:00

Em termos pessoais, confesso que sou dos espectadores confundidos com a indiferença que, nesta temporada de prémios, se tem abatido sobre o filme "Silêncio", de Martin Scorsese — insolitamente reduzido a outro tipo de silêncio nos Globos de Ouro e nas nomeações para os BAFTA. Será que a Academia de Hollywood vai prolongar tal indiferença, ignorando-o nas nomeações para os Oscars?

Ao mesmo tempo, gostaria de evitar favorecer a ideia de que o fulgor e o génio de "Silêncio" dependem de qualquer reconhecimento do género, mais ou menos formal ou institucional. De facto, os filmes não se definem pelas distinções que acumulam (muito menos pelos milhões que ganham ou perdem). Definem-se, isso sim, pela capacidade de mobilizar os seus espectadores para experiências que desafiam as fronteiras do próprio cinema.
Assim acontece com esta adaptação do romance homónimo de Shusaku Endo, publicado em 1966 (entre nós disponível em edição Dom Quixote), centrado na saga de dois padres jesuítas portugueses (Andrew Garfield e Adam Driver) no Japão da segunda metade do século XVII. Como o próprio Scorsese tem sublinhado, tratava-se de reenfrentar as questões da fé católica num contexto em que o choque de culturas é inevitável.

Estamos, em boa verdade, perante o prolongamento de uma vertente de reflexão que já tinha marcado dois títulos fundamentais da obra do realizador: "A Última Tentação de Cristo" (1988), sobre Jesus como personagem também eminentemente humana, e "Kundun" (1997), centrado na saga heróica do actual Dalai Lama. Dito de outro modo: Scorsese sente-se fascinado por personagens afectados pelo sopro do divino.

O que está em jogo é radicalmente humano: como estar à altura de uma missão que apela ao encontro com Deus? E também visceralmente cinematográfico: como colocar em cena essas aventuras humanas em que cada indivíduo se confronta com aquilo que, envolvendo um medo sem palavras, já não é do domínio do visível? E, por vezes, a partir de circunstâncias profudamente dramáticas: as figuras centrais de "Silêncio" tentam mesmo esclarecer se um outro jesuíta português (Liam Neeson) renegou a sua fé e passou a viver como "japonês"…
Da construção do espaço, primorosamente tratado pela fotografia de Rodrigo Prieto, até aos ritmos sensuais da narrativa, muito graças à montagem de Thelma Schoonmaker, "Silêncio" é um filme que se distingue por algo de primitivo — como se estivéssemos a descobrir a origem dos próprios poderes cinematográficos.
Ao mesmo tempo, nos particularismos das suas referências históricas e culturais, "Silêncio" é também um objecto de enorme apelo universal, superando barreiras de crenças ou não-crenças. Vale a pena referir que, no caso português, a sua divulgação tem sido feita através de um trailer, muito original, desenhado por uma ilustradora japonesa e um padre jesuíta português.   

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