Albano Jerónimo, Diogo Dória e Álvaro Correia: memórias de várias décadas portuguesas


joao lopes
21 Set 2019 0:32

Uma noção simplista, alimentada pelas versões mais maniqueístas da ficção televisiva, tenta fazer crer que "reconstituir" o passado é uma tarefa totalmente codificada: procuram-se os cenários da época, vestem-se os actores de acordo com as respectivas modas… e apresenta-se uma história que, supostamente ou não, aconteceu naquele tempo…

O mínimo que se pode dizer de "A Herdade" é que se trata de um filme que, longe de menosprezar os factores a que, normalmente, damos o nome de "adereços", aposta em revisitar o passado através de um risco calculado e estimulante. A saber: fazer o retrato de várias décadas da história de Portugal (pré e pós-25 de Abril) através das vivências específicas no interior de um latifúndio na margem sul do rio Tejo.
Num certo sentido, trata-se de explorar acontecimentos públicos e privados que, quase sempre, o cinema português abordou omitindo as personagens das classes dominantes. Ora, neste caso, no centro dos acontecimentos surgem, precisamente, o proprietário do latifúndio e a sua mulher — interpretados com especial subtileza emocional por Albano Jerónimo e Sandra Faleiro, respectivamente.
Aliás, o trabalho dos actores é essencial para a visão convulsiva  — apetece dizer: romântica e anti-romântica — proposta pelo realizador Tiago Guedes. Estamos, afinal, perante um sedutor fresco histórico em que o drama nasce dos conflitos que se desenham entre a verdade emocional de cada personagem e o papel que lhe é atribuído pelo sistema familiar, a hierarquia social ou a conjuntura política.
Não será um caso isolado na dinâmica criativa do cinema português, mas não há dúvida que este é um filme que se distingue pela capacidade de enfrentar as nossas memórias históricas evitando definir personagens e situações através de pré-conceitos, sejam eles dramáticos ou políticos. 
Nessa medida, "A Herdade" ilustra também a possibilidade de questionar o ser português muito para além de qualquer perspectiva pitoresca ou populista. Entenda-se: contemplando as linhas contraditórias da nossa história — e também do nosso imaginário.

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