Ruby Barnhill e Mark Rylance — a fábula entre o humano e o digital


joao lopes
7 Jul 2016 18:10

Quando pensamos em Steven Spielberg, seja qual for o modo como os seus filmes nos tocam, é inevitável reconhecermos as marcas de uma invulgar diversidade. Ele é, afinal, o autor de "Tubarão" (1975), o filme que "inventou" o modelo de blockbuster, mas é também o retratista metódico do Holocausto em "A Lista de Schindler" (1993), o observador das angústias da infância em "O Império do Sol" (1987) e o encenador épico de "A Guerra dos Mundos" (2005).

Face a "O Amigo Gigante", os ziguezagues do seu trabalho tornam-se ainda mais sensíveis, em particular se o compararmos com o título anterior, "A Ponte dos Espiões" (2015). E isto porque há um curioso elo humano a ligar os dois filmes: em "A Ponte dos Espiões", o inglês Mark Rylance interpretava um cidadão soviético numa teia de espionagem em plena Guerra Fria (o papel valeu-lhe o Oscar de melhor actor secundário); agora, o mesmo Rylance é um gigante vegetariano que, além do mais, não pactua com a maldade dos outros habitantes do País dos Gigantes.
Acontece que Spielberg quis regressar às maravilhas originais da fábula, adaptando um clássico de Roald Dahl, "The BFG", publicado em 1982, centrado na relação inesperada que se estabelece entre o gigante ("Big Friendly Giant") e uma menina de nome Sophie (Ruby Barnhill). Para compor a sua personagem, Rylance foi transfigurado através das técnicas de performance capture — primeiro sendo registado através de um complexo aparato de câmaras, depois surgindo transfigurado em personagem digital (recorde-se que Spielberg já aplicara tais recursos em "As Aventuras de Tintin", lançado em 2011).
Compreende-se o desafio: trata-se de narrar a odisseia de dois seres bem diferentes — desde logo na sua definição material —, através de um registo fantástico ou fantasista que reencontra os valores primordias do conto moral. Dito de outro modo: o essencial não está na ostentação da técnica (de uma complexidade imensa, não tenhamos dúvidas), mas sim na criação de um espaço dramático em que Sophie e o seu gigante vivem uma aventura empolgante através da tensão entre as forças do Bem e a as ameaças do Mal.
"O Amigo Gigante" acaba por ser um objecto que envolve uma importante demarcação em relação à lógica tecnológica e às opções narrativas de muitos blockbusters de "super-heróis" que têm marcado as opções recentes de Hollywood. Em última instância, revisitando as suas próprias memórias de espectador, Spielberg reencontra, aqui, a herança simbólica de Walt Disney — ironicamente ou não, este é o primeiro título da sua filmografia com chancela de produção dos estúdios Disney.

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