joao lopes
25 Jan 2018 20:02

Eis uma amarga ironia dos tempos: é bem verdade que a imagem mediática dominante do cinema de Hollywood envolve efeitos especiais e orçamentos de milhões… Mas não é menos verdade que, muito para além dessa imagem, é do cinema americano que continuam a surgir títulos fundamentais que, de uma maneira ou de outra, nos ajudam a lidar com o nosso próprio presente. Dito de outro modo: "The Post", o filme de Steven Spielberg, sobre o jornal de "The Washington Post" em 1971 é um dos grandes objectos políticos do ano de 2017.

Seja como for, não simplifiquemos. Claro que qualquer espectador minimamente disponível encarará a exigência jornalística da verdade, tal como encenada em "The Post", como uma atitude que remete para a América de Donald Trump e, em particular, para os conflitos abertos entre o presidente e a maior parte dos órgãos de informação (jornais e televisões). Ao mesmo tempo, Spielberg não explora paralelismos fáceis, centrando o seu trabalho na odisseia muito particular dos jornalistas de "The Washington Post" quando, a partir de 18 de Junho de 1971, o jornal começou a divulgar os lendários "Pentagon Papers".
A conjuntura em que tudo aconteceu, convém lembrar, estava marcada pelo envolvimento militar dos EUA no Vietname, com a crescente desaprovação de muitos cidadãos americanos. Nos seus muitos milhares de páginas, os "Pentagon Papers" permitiam perceber, afinal, que a administração de Richard Nixon mascarava a situação real no terreno. Mais do que isso: o documento, que tinha sido encomendado por Robert McNamara, secretário da Defesa (interpretado no filme por Bruce Greenwood), reconhecia que não era possível vencer a guerra.
Dito isto, o essencial está, como é óbvio, muito para além de qualquer "inventariação" de factos que o filme contenha. Spielberg assume-se como herdeiro muito directo da grande tradição liberal do cinema de Hollywood, em particular na abordagem das tensões entre os interesses enraizados na cena política e as acções individuais. Não por acaso, o notável argumento do filme (assinado por Liz Hannah e Josh Singer) polariza as questões em duas personagens fulcrais: Ben Bradlee, chefe editor de "The Washington Post", e Kay Graham, proprietária do jornal — interpretados, respectivamente, por Tom Hanks e Meryl Streep.

* Este é o registo de uma conversa com Steven Spielberg e vários actores de "The Post" — Meryl Streep, Tom Hanks, Bob Odenkirk e Bradley Whitford — nas instalações de "The Washington Post".

"The Post" consegue o mais difícil, porque mais subtil, na evocação de tão complexa conjuntura: fazer-nos compreender as dinâmicas colectivas que estavam em confronto — desde a gestão danosa de Nixon às questões legais e morais levantadas pela eventual publicação dos "Pentagon Papers" —, sem apagar as tensões inerentes aos mais importantes protagonistas individuais. Dito de outro modo: estamos perante um cinema de evocação histórica que é, indissociavelmente, um trabalho de exposição de delicadas, por vezes ambíguas, componentes psicológicas.
Muito se tem falado do valor "simbólico" do trabalho de Meryl Streep, assumindo esse misto de fragilidade e energia que caracterizava Kay Graham, compelida a gerir "The Washington Post" num universo de administradores em que, literalmente, não havia mais mulheres. É uma via possível para enquadrar os reflexos actuais da personagem de Graham, mas seria redutor encará-la em função de qualquer maniqueísmo panfletário. O que torna a sua composição tão admirável decorre da capacidade de expor as singularidades individuais sem esquematizar as atribulações sociais e políticas de um momento específico da história dos EUA e do mundo, irredutível a qualquer outro — fazer história e revalorizar o cinema como instrumento da história que fazemos, eis a lição, de ums só vez estética e política, clássica e moderna, de "The Post".

* Meryl Streep e Tom Hanks entrevistados no programa "CBS This Morning".

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