joao lopes
13 Dez 2019 23:45

Neste tempo de tantos e tão sedutores progressos técnicos do cinema, o que distingue um grande filme não é (nunca foi, nunca será) o rol de instrumentos, efeitos ou "gadgets" que nele podemos encontrar… O essencial está sempre noutra dimensão. A saber: a singularidade narrativa, a arte de construir uma história em que o mundo tal como o conhecemos se espelha, renasce e complexifica.

Aqui temos o exemplo de "Graças a Deus", evocação subtil e perturbante do comportamento pedófilo de um padre da Igreja católica francesa — foi, aliás, um caso apaixonadamente acompanhado pela opinião pública. Escusado será dizer que seria muito fácil tratar tal caso de forma sensacionalista, promovendo uma qualquer demonização gratuita que, além do mais, evitaria um fundamental vector dramático: este não é um filme "contra" a Igreja, antes um objecto que questiona essa mesma Igreja sobre a capacidade e a vontade de, em defesa dos seus próprios valores, assumir a verdade dos factos.


O realizador de "Graças a Deus", François Ozon, é um criador de invulgar versatilidade. Afinal, dele já vimos coisas tão diversas como o drama "Sob a Areia" (2000), o musical "8 Mulheres" (2002) ou o policial "Swimming Pool" (2003). Desta vez, o seu trabalho filia-se numa muito antiga e exemplar tradição de cinema social francês, tanto mais envolvente quanto sabe evitar qualquer simplismo panfletário — no essencial, "Graças a Deus" é um filme sobre o sofrimento das vítimas e, mais do que isso, a sua capacidade de, duas ou três décadas depois de terem sido abusados, virem publicamente expor a sua história.

Ozon possui essa qualidade rara de saber situar socialmente cada personagem, sem nunca favorecer qualquer "simbolismo". Este é, de facto, um filme sobre ser vivos, atento a todas as diferenças humanas, como no cinema do mestre Jean Renoir (1894-1979), sempre apoiado num exemplar leque de actores. Melvil Poupaud, Denis Ménochet e Swann Arlaud (este um brilhante e muito pouco conhecido intérprete) lideram um elenco que sustenta, afinal, a carga de contundente realismo a que todo o projecto obedece.

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