joao lopes
9 Fev 2017 23:39

Face a um qualquer documentário cinematográfico, é sempre possível relançar a questão mais básica: que significa documentar?

"Eldorado XXI", de Salomé Lamas, pode ser um pretexto tanto mais interessante quanto o seu projecto envolve a amostragem (documental, justamente) de um espantoso universo:  a pequena comunidade de La Rinconada y Cerro Lunar (Perú), situada a mais de 5000 metros de altitude, na zona dos Andes.

O filme apresenta-se claramente dividido em duas partes, a primeira das quais inclui um "objecto" incontornável: um plano fixo de cerca de 50 minutos em que é apresentado o movimento dos mineiros da zona, cumprindo as rotinas de entrada e saída do seu trabalho.

[Não é fácil discutir a pertinência desse plano, quanto mais não seja porque se corre o risco de "legitimar" a estupidez que gosta de proclamar que o cinema português é feito de planos fixos "onde não acontece nada", ou ainda que a obra de Manoel de Oliveira não passa de uma colecção de filmes com mais de seis horas de duração…]

Claro que tal plano surge "sustentado" por uma banda sonora que convoca as mais diversas vozes e outros elementos informativos. Acontece que isso não invalida uma dúvida metódica: a "coincidência" do tempo narrativo de uma cena de um filme com o tempo real de uma determinada acção será um valor automaticamente pertinente?
Por semelhança ou contraste, podemos contrapor experiências como "A Corda" (Alfred Hitchcock, 1948) ou "A Arca Russa" (Aleksandr Sokurov, 2002) em que a possibilidade dessa "coincidência" era levada ao extremo de o próprio filme se arquitectar através de um único plano-sequência. Ao mesmo tempo, porém, não será verdade que, num caso como noutro, se tratava de desafiar a ilusória linearidade da narrativa, afinal gerando um tempo outro, indissociável da sua verdade cinematográfica?
Digamos que "Eldorado XXI" tem, pelo menos, a vantagem de suscitar tais dúvidas, até porque, importa lembrar, a sua segunda parte segue uma lógica mais "tradicional", ainda que também contaminada por algumas facilidades maneiristas (seria, aliás, curioso reflectir sobre a existência de todo um pendor formalista de algum cinema português que, não poucas vezes, ganha uma evidência "simbólica" capaz de limitar o alcance e a consistência de interessantíssimos projectos).
Seja como for, é fundamental sublinhar o facto, indiscutivelmente importante, de um filme como este, estranho aos padrões comuns de consumo, chegar às salas — mais do que nunca, a diversidade interior do cinema português deve ser vista, divulgada e pensada.

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