Noémie Merlant pintando o seu quadro — um pressentimento do fogo


joao lopes
13 Mar 2020 23:01

Dir-se-ia que entre pintura e cinema sempre existiu um jogo de sedução que já deu origem a filmes tão invulgares como "A Bela Impertinente", de Jacques Rivette, ou "Van Gogh", de Maurice Pialat (ambos franceses, ambos de 1991). No caso de "Retrato da Rapariga em Chamas" — distinguido em Cannes/2019 com o prémio de argumento —, dir-se-ia que a perturbação da pintura começa no seu valor de troca.

Troca de quê? Ou para quê? Pois bem, no sentido de um contrato conjugal: em finais do século XVIII, Marianne chega a uma ilha da Bretanha para pintar o retrato de Héloïse, retrato esse que pode desempenhar um papel decisivo na consumação do casamento de Héloïse. Neste universo de predomínio do masculino, é no espaço do feminino que se decide a verdade dos desejos.

Acontece que nenhuma imagem, a começar pelo retrato de um ser humano, "reproduz" o que quer que seja. A sua figuração envolve sempre um elo, transparente ou inconsciente, entre aquele (ou aquela) que faz pose e aquele (ou aquela) que transforma essa pose em matéria visual. Dito de outro modo: no jogo de olhares que se instala, Marianne e Héloïse são tocadas pelo fogo do amor.
Céline Sciamma é uma cineasta dos enigmas passionais e, mais do que isso, da dimensão mais secreta das identidades sexuais — lembremos o seu magnífico "Tomboy/Maria-Rapaz" (2011). Agora, através do requintado contributo de Noémie Merlant e Adèle Haenel, respectivamente como Marianne e Héloïse, Sciamma encena qualquer "coisa" que escapa às regras correntes das alianças humanas, expondo a dimensão sobre-humana de uma entrega amorosa — cinema do visível, pressentimento do invisível. 

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