Realizador português recorda a Alemanha dos tempos do Muro

por RTP
Joaquim Pinto, ao receber o Prémio Especial do Júri de Locarno DR

Joaquim Pinto foi misturador de som em mais de cem filmes com realizadores de renome. Entre 1987 e 1996 produziu três dezenas de filmes. Ultimamente, como realizador, assinou como filme mais recente o "E Agora? Lembra-me", titular de vários prémios internacionais. Em 1975-1976 tinha estudado na Universidade de Leipzig.

Ao mesmo tempo que Joaquim Pinto, estudava também na Universidade Karl Marx, em Leipzig, uma jovem cheiinha, de cara redonda, com franja, e uma acentuada preferência pelas maxi-saias em moda no ocidente e que por isso "lhe davam um certo toque irreverente". Joaquim Pinto cruzou-se com ela algumas vezes. Mais tarde, viu-a reaparecer na política alemã, com o nome de Angela Merkel, e achou que devia estar enganado: "não podia ser a mesma pessoa". Mas quis esclarecer a dúvida: "Fui procurar fotos antigas, e era de facto a rapariga das saias compridas".

Nesse tempo, Angela Merkel militava na FDJ (Juventude Livre Alemã, a organização de juventude do regime) e defendia a política oficial - ou seja, o Muro. Mas já então o Muro era uma componente, entre outras, de um ambiente opressivo que Joaquim Pinto recorda nesta entrevista ao on-line da RTP.

Pergunta: Quando estiveste em Berlim-Leste? Que objectivo tinha a tua estadia?

Resposta: No Verão de 74 fiz uma viagem de carro com o meu pai pela Europa, e decidimos também visitar vários países da Europa de leste. Viagem atribulada, pois não tínhamos vistos. Entrámos pela Jugoslávia e fomos subindo... Não sei bem como (a burocracia mais apertada tem sempre buracos), mas conseguimos chegar à RDA.

Tinha terminado o liceu e esperava entrar para medicina. Nesse ano as aulas não abriram, fomos enviados para o serviço cívico e aproveitei para percorrer diversas embaixadas e tentar uma bolsa de estudo. Para minha surpresa (não tinha ligações ao PC) consegui uma bolsa para a RDA. Já conhecia portanto o país e não tinha ilusões quanto ao que me esperava. Mas a qualidade do ensino de medicina era boa.

Mal cheguei, fui entrevistado por um funcionário da universidade, que mais tarde vim a saber ser também da STASI. Eu levava duas malas com livros. Uma com literatura, poesia, e alguns livros de cabeceira ligados ao movimento socialista. Outra com livros sobre medicina, psiquiatria e psicanálise. O funcionário passou a minha pequena biblioteca pessoal a pente fino e percebi que metade dos livros deveriam fazer parte de um qualquer index, pois foram-me retirados para "desinfecção".

Disse-lhe que se ia divertir com "A Função do Orgasmo" do Wilhelm Reich e lembrei que em 1956 o governo americano tinha incinerado seis toneladas de livros, artigos e publicações do autor, provavelmente a maior fogueira desde a instigada por Goebbels em 1933. Não voltei a ver os meus livros, mas fui admoestado várias vezes por essa personagem, que tentou (sem sucesso) corrigir os meus "desvios ideológicos", "vícios burgueses" e faltas de disciplina.

Percebi que estava inscrito (por engano?) em economia. Tentei por todas as formas explicar que era um erro, mas ao fim de três meses desisti. Fiquei portanto um ano na universidade de Leipzig (na altura chamava-se Karl-Marx-Universität), completei o ano lectivo e decidi regressar.

P.: Vieste alguma vez a Portugal durante essa estadia?


R.: Durante a estadia tinha que pedir autorização para sair da RDA, um processo moroso e para o qual tinha de dar explicações. Só consegui vir duas vezes a Portugal mas não obtive visto no Natal.

Tinha passado Dezembro a tentar convencer os meus colegas que deveríamos fazer uma festa pela morte da Rosa Luxemburgo, personagem ignorada pelo regime e desconhecida de muitos locais. Eu defendia que a criatividade do movimento operário se tinha finado com o assassínio do Jean Jaurès, a deriva militarista do SPD, a repressão da revolução alemã e a morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. A minha tentativa não deu em nada, mas valeu-me a interdição de viajar.

P.: Já podias aperceber-te, nesse momento, de que estivesse em gestação algum tipo de oposição ao regime, como a que veio a manifestar-se mais tarde com o Bündnis'90 ou a Umweltbibliothek?

R.: No dia de Natal, com muita neve e muitos graus negativos, fui dar um passeio pela praça do mercado em frente à velha Rathaus. A praça estava completamente deserta, todos recolhidos em casa a celebrar. Já nessa altura a imagem do pai natal da Coca Cola tinha invadido o leste e não faltaria muito para chegar à China.

Apercebi-me que outro rapaz dava também voltas na praça. Casaco preto, boina preta, olhos que me lembravam uma fotografia do Lenine na adolescência. Seria um estudante estrangeiro a quem negaram um visto de saída? Não se enquadrava no meu perfil de "alemão". À distância, percebo a estupidez de tentar perfilar as pessoas, como se houvesse "o alemão", "o português", "a pêra-rocha"...

Fui falar com ele, perguntei-lhe se precisava de alguma coisa. Respondeu-me num alemão perfeito e explicou-me que vivia com o pai, maquinista dos caminhos de ferro que estava de serviço. Estava sozinho, como eu. Convidou-me a ir a casa dele.

Apanhámos dois comboios e saímos no que seria o subúrbio de um subúrbio operário de Leipzig. Caminhámos junto aos carris até chegarmos a um prédio antigo que dava para a floresta, uma dessas construções onde se albergavam no início da industrialização os operários recém chegados do campo. Um apartamento minúsculo, despojado, sem casa de banho.

Disse-lhe que era português. Falámos de histórias, das nossas vidas, de livros, de países. Falou-me de Portugal, fiquei surpreendido. Gostava de literatura espanhola e portuguesa. Falava um pouco de espanhol e estava a tentar aprender português sozinho.

Dentro de casa, um frio de rachar. A caldeira de aquecimento estava avariada há dias. Disse-me: "só há um sítio onde está quente, a minha cama". E assim, debaixo de um edredon pesado, leu-me sonetos de Camões no seu português imaginado, e pediu-me para lhos ler, ouvindo cada inflexão de voz com prazer. Não sei como chegou esse Camões à RDA e esqueci-me de lhe perguntar. Não dormimos nessa noite. Quando demos pelas horas, a luz da manhã já entrava pelo quarto.

Acompanhou-me de volta ao comboio. A meio caminho, disse-me: "Du bist schwul" ["Tu és homossexual"]. Não fez uma pergunta. Disse, simplesmente. Fiz uma pausa, respondi "Sim." Ele disse: "Eu também". E disse-me: "Estamos organizados e sabemos o que queremos". Nos dez minutos seguintes, ao falar-me da sua Alemanha, percebi que alguma coisa ia acontecer naquele país, mais tarde ou mais cedo.

P.: Que tipo de controlo policial se fazia sentir sobre um estudante estrangeiro, como era o teu caso?

R.: Para além do problema das saídas do país e da sensação de de haver mecanismos de controlo difusos, não senti directamente esse controlo policial como mais apertado do que em qualquer sistema autoritário. Mas eu vinha de um Portugal que tinha acabado de se libertar de um regime apertado.

Evidentemente, conheci pessoas impedidas de exercerem a sua profissão por motivos políticos, que viviam quase isoladas. Eu não passava de um emigrante e o controlo policial fazia-se sobretudo sentir sobre a população, e era vivido de uma forma particularmente aguda pelos estrangeiros que eram refugiados políticos e não tinham passaporte.

Conheci vários casos vindos da América Latina e do Brasil, saídos de lutas políticas, com necessidade de partilhar experiências e um pavor total em serem controlados. Lembro-me de um amigo brasileiro com ideias anarquistas e obcecado com perseguições. Uma noite ficámos à conversa no bar da gare, um espaço enorme que estava aberto toda a noite. Falou-me da tortura e da guerrilha no Brasil.

Sentou-se um alemão enorme à nossa mesa. Insistiu em pagar-nos uma bebida. Eu pouco bebi, mas o brasileiro foi sendo atestado com várias canecas de litro de cerveja, e acabou soltando diatribes contra o "capitalismo de Estado", a "repressão" e a "burocracia".

No final, o alemão deu-me uma palmada nas costas, tirou o cartão da polícia de Estado e disse-me: "Desta vez escapam, porque são simpáticos. Mas, tu (apontando para o brasileiro), tem cuidado com a língua." O alemão saiu e o brasileiro ficou branco. Vomitou.

Os controlos difusos chegavam a toda a parte. Lembro-me de um rapaz que trabalhava no refeitório. Um dia disse-me, pedindo para não contar a ninguém, para não beber o chá que nos era oferecido ao sábado. Era ele que colocava os "medicamentos" destinados a acalmar e reduzir o desejo sexual dos estudantes.

Também me lembro das discussões com os porteiros da Gewandhaus sobre a roupa aceitável para ir a um concerto. Por mais que dissesse que isso em Portugal tinha acabado com a revolução do 25 de Abril, eram inflexíveis.

Em Portugal viviam-se meses agitados e a única forma de comunicar era por carta. Todas as cartas que recebia chegavam-me abertas, tinham sido controladas por alguém. Às vezes certos parágrafos eram assinalados a vermelho. Não tenho dúvidas que as cartas que enviei a alguns amigos depois de ter regressado a Portugal foram também interceptadas, nunca obtive respostas e perdi a ligação com eles.

P.: Como era nesse tempo o regime leste alemão e que atitude mostrava a população sobre ele?


R.: A Alemanha de leste parecia-me um país ultra conservador, directamente dependente das directivas de Moscovo, que aliava uma crença desmedida na disciplina prussiana ao dogmatismo ideológico baseado num pretenso "socialismo científico". Era constantemente bombardeada pela propaganda ocidental, que apresentava um estilo de vida baseado no acesso fácil a bens de consumo e à prosperidade económica.

As pessoas eram seduzidas por essas imagens. A televisão era um meio poderoso e a RDA tinha adoptado a norma de televisão a cores SECAM em 1969 por razões puramente políticas. Era um contra-senso com a tendência de unificação de normas nas Alemanhas (apesar do Muro), e implicava que as emissões da Alemanha ocidental eram dificilmente captadas e só a preto e branco. Mas lembro-me que os descodificadores PAL / SECAM estavam acessíveis no mercado negro e eram comuns em muitas casas.

Não creio que a maioria da população tivesse uma consciência crítica em relação ao regime. Desejavam aceder a esses bens e estilo de vida, mas certamente não queriam perder os mecanismos de protecção social e de pleno emprego que faziam parte do sistema "socialista".

P.: E nos meios intelectuais, não havia sinais de mal-estar? Afinal pouco faltava para 1976, o ano em que o cantor de intervenção Wolf Biermann foi impedido de voltar à RDA, depois de uma "tournée" no ocidente...

R.: Havia vozes dissidentes nos meios intelectuais e universitários. O Wolf Biermann era talvez o mais conhecido, mas suponho que o seu percurso se repetiu com vários intelectuais que acreditaram na possibilidade de uma sociedade socialista e foram sendo progressivamente alienados pela rigidez, burocracia e controlo policial das elites políticas, entrando em confronto directo com o regime.

No meio universitário, tive discussões com muitos jovens que estavam em fases diversas desse processo de rotura. Tive também conversas com professores na área da economia, alguns com uma consciência clara das limitações do sistema de economia planificada e burocratizada e da possibilidade de uma rotura.

P.: Que atitude encontraste nesses meios sobre o processo revolucionário que estava entretanto a decorrer em Portugal?


R.: O que mais me impressionou foi a sua percepção de que, no estado de divisão de influências entre os blocos ocidental e soviético, qualquer veleidade de construção de uma sociedade socialista em Portugal seria no mínimo incómoda e desestabilizadora, e não haveria da parte de Moscovo qualquer interesse em apoiar esse movimento.

Segundo eles, o peso e a influência do PCP em Portugal só seria importante na medida em que permitisse uma negociação favorável aos movimentos de independência africanos com ligações à URSS, pois o continente africano era fundamental para os objectivos geopolíticos do bloco soviético.

No dia 10 de Novembro de 1975, Portugal transfere a soberania de Angola para o MPLA. Venho por três dias a Portugal, a 15 de Novembro de 1975. Falo a vários amigos da minha curta experiência na RDA, meio aturdido com o controlo obsessivo e concentracionário.

Em Portugal vive-se ainda a euforia do Verão Quente. Falo-lhes também das conversas que tive na RDA. Alguns conhecidos do PCP dizem-me que estou a alucinar, que ando a ler Kafka e que faço insinuações contra-revolucionárias. Poucos dias depois, já de volta, chegam-me notícias de um golpe em Portugal encabeçado por um Ramalho Eanes que estava decidido a acabar com o PREC...

P.: O ano seguinte, 1976, foi também o ano em que Honecker passou a chefiar o Governo da RDA. Como foi recebido, e com que expectativas, esse render da guarda?

R.: Não creio que a chegada do Honecker ao poder tenha representado uma grande alteração. Talvez houvesse esperança de que repressão fosse atenuada, mas a sensação era de continuidade. Os anos do Walter Ulbricht, estalinista da velha guarda com a sua NÖS e a mania de uma economia "científica", continuavam muito presentes.

Quando cheguei, corriam histórias sobre a recém inaugurada torre da universidade, o mais alto edifício de Leipzig com 36 andares, em forma de livro. Hoje rebaptizada de City-Hochhaus Leipzig, pertence ao banco de investimento americano Merrill Lynch. Segundo essas histórias, o responsável pela construção ter-se-ia suicidado após uma das janelas se ter recusado a abrir na presença do Walter Ulbricht, um dos instigadores do projecto megalómano.

P.: Junho de 1976 é, por outro lado, o momento de violentas revoltas na Polónia contra o aumento dos preços, com centenas de presos, mas com um recuo do Governo no saldo final, e com a constituição do KOR, integrado por intelectuais como Kuron e Modzelewski. Que ecos houve disto tudo na RDA?


R.: Nos anos 70, a Polónia era um campo activo de discussões políticas e de criatividade artística. Mas as notícias circulavam pouco e chegavam atrasadas e fragmentárias. Tinha duas amigas polacas que estudavam também na universidade e que me iam mantendo informado das novidades. Através delas, recebia jornais, revistas de arte e, um pouco a medo, panfletos de grupos que se opunham ao regime e que elas me traduziam.

A percepção mais directa que tive da presença militar soviética veio de onde menos esperava. A residência universitária onde vivia ficava perto de uma base militar soviética. Havia uma cantina com comida russa e preços acessíveis, e mesmo um cinema onde passavam filmes russos e clássicos indianos dobrados. Percebi que podia aceder à cantina e tornei-me cliente habitual. Nem um alemão se via por ali, era um mundo separado.

Fiz amizade com alguns soldados russos. Tinham a percepção de serem vistos como ocupantes, respeitados mas ostracizados pela população alemã. Alguns faziam parte das forças especiais, um deles tinha estado na Checoslováquia em 1968 e estavam ao corrente da situação instável na Polónia. Todos eles partilhavam uma profunda frustração e não tinham a mínima convicção em relação às acções que eram chamados a cumprir.

Às vezes pediam-me para os acompanhar, quando a missão era demasiado ridícula. Passei um domingo com um desses soldados à procura da melhor caixa de chocolates (missão difícil dada a escassez de bens de luxo) para a filha do comandante da base que vinha de visita.

Em Leipzig havia também a Deutsche Hochschule für Körperkultur, onde se centrava a investigação que conduzia a resultados extraordinários no desporto. Conheci alguns desses atletas que eram vigiados de perto e descartados ao mínimo deslize. Entre eles, um remador cubano de alta competição, desenraizado e deprimido, que ao fim de alguns meses pediu para o mandarem de volta, não resistiu aos tais métodos científicos.

E para quem pensa que os controlos não tinham buracos, lembro-me que de volta de uma visita a Berlim e de duas noites sem dormir, apanhei o comboio para Leipzig. Adormeci e acordei muitas horas depois. Não reconhecia os locais nem a língua. Estava na fronteira entre a Polónia e a Rússia.

P.: Reconheces alguma coisa desse controlo em filmes como "A vida dos outros"?

R.: "A vida dos outros" é uma versão romanceada de acontecimentos ocorridos na RDA. É um relato interessante, mas sugiro, para de se ter uma ideia da vida nesse país, ver os filmes e as emissões de televisão produzidas então. No dia em que caiu o muro de Berlim, estreou um dos últimos filmes da DEFA, o estúdio estatal que tinha o monopólio da produção de cinema. O filme chamava-se Coming out (Heiner Carow, 1989), o primeiro e último filme produzido na RDA que tratava o tema da homossexualidade. Ganhou o Leão de Prata em Berlim e dá uma ideia do ambiente que se vivia então.
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