Amazónia. Redes criminosas e políticas anti-ambientais: como o pulmão da Terra está a esgotar-se

por RTP
O relatório da Human Rights Watch denuncia a desflorestação ilegal da Amazónia, impulsionada por redes criminosas Amanda Perobelli - Reuters

A Human Rights Watch publicou esta terça-feira um relatório sobre a desflorestação na Amazónia brasileira. Ao longo de 169 páginas, a organização não-governamental examina como a desflorestação ilegal está ligada a redes criminosas, que usam a violência para intimidar e eliminar do seu caminho os que defendem a floresta, ao mesmo tempo que o Estado fracassa em punir os responsáveis por esses crimes e opta por políticas anti-ambientais.

O relatório intitulado “Máfias do Ipê: como a violência e a imunidade impulsionam o desmatamento na Amazónia brasileira” resulta da investigação da Human Rights Watch, que entrevistou mais de 170 pessoas, desde membros de povos indígenas a funcionários públicos, que forneceram uma visão interna do Governo.
 
Os investigadores chegaram à conclusão que a desflorestação na Amazónia é impulsionada em grande parte por redes criminosas, já que os incêndios não ocorrem naturalmente no ecossistema húmido da bacia amazónica.

Após removerem as árvores de maior valor, os membros destas redes incendeiam a floresta, onde a existência de vegetação mais seca e inflamável facilita a propagação do fogo.
 
Estas redes criminosas têm a capacidade de coordenar a extração, o processamento e a venda de madeira em larga escala. São muitas vezes conhecidas como “ipê máfias”, referindo-se à árvore do ipê cuja madeira está entre as mais valiosas e procuradas pelos madeireiros.
 
No entanto, esta não é a única espécie de árvore destruída por estes grupos, que muitas vezes procuram limpar inteiramente a floresta, para dar espaço a gado ou culturas.
 
Além de coordenarem toda a logística ligada à venda da madeira, também se asseguram de que ninguém os impede de chegar aos seus fins, destacando homens armados para defender os seus interesses.
Clima de medo e violência 
“Os brasileiros que defendem a Amazónia enfrentam ameaças e ataques por parte de redes criminosas envolvidas na extração ilegal de madeira”, afirmou Daniel Wilkinson, diretor dos Direitos Humanos e meio ambiente da Human Rights Watch.
 
Durante a última década, mais de 300 pessoas foram assassinadas no contexto de conflitos pelo uso da terra e de recursos naturais na Amazónia, muitas delas por pessoas envolvidas na extração ilegal de madeira, de acordo com os dados compilados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), e utilizados pela Procuradoria-Geral da República.
 
No seu relatório, a Human Rights Watch examinou 28 assassinatos, 4 tentativas de assassinato e mais de 40 casos de ameaças de morte, nos quais havia claras evidências de que os responsáveis por esses crimes estavam envolvidos na desflorestação ilegal e viam as suas vítimas como obstáculos às suas atividades criminosas.
 
Algumas das vítimas eram agentes públicos, mas a maioria era indígenas ou outros moradores que denunciaram a exploração ilegal de madeira às autoridades. Estes desempenham um papel fundamental no combate à desflorestação, já que as suas denúncias evitam que as atividades ilegais passem despercebidas, sofrendo represálias.
 
No povoamento Terra Nossa, no estado do Pará, um morador foi morto e outro desapareceu em 2018, depois de ambos terem dito que planeavam denunciar às autoridades a exploração ilegal de madeira. O irmão de uma das vítimas, que estava a investigar o crime por conta própria, também foi assassinado.
 
Os moradores desse povoamento relataram que os homens foram mortos por uma milícia armada que trabalha para uma rede criminosa de fazendeiros que, segundo um relatório do INCRA, estão envolvidos em extração ilegal de madeira.
 
Mas este é longe de ser um caso único, e qualquer pessoa que queira denunciar o desmatamento ilegal é vista como um obstáculo a eliminar, muitas vezes, antes mesmo de conseguir fazê-lo.

Foi o caso do líder de um sindicato de pequenos agricultores, que, depois de ter demonstrado intenção de denunciar a extração ilegal de madeira, também foi assassinado.
 
“A situação só está a piorar com o presidente Bolsonaro, cujo ataque aos órgãos de proteção do meio ambiente coloca em risco a floresta e as pessoas que ali vivem”, disse Daniel Wilkinson.
 
Os defensores, muitas vezes povos indígenas e outros moradores, assumem esse risco com pouca expectativa de que o Estado os proteja ao enfrentar madeireiros que descaradamente violam as leis ambientais do Brasil, e que ameaçam e matam os que estão no seu caminho. 
Impunidade e falta de proteção dos defensores da floresta
Os responsáveis pela violência raramente são levados à justiça. Dos mais de 300 assassinatos registados pela CPT, apenas 14 foram julgados; dos 28 assassinatos examinados pela Human Rights Watch, apenas dois foram julgados; e dos mais de 40 casos de ameaças, nenhum foi a julgamento.
 
Segundo o relatório, esta impunidade generalizada deve-se, em grande parte, à falta de interesse da polícia, que não conduz investigações adequadas.

A polícia local reconhece as deficiências e defende-se argumentado que isso acontece devido à distância, já que as mortes ocorrem em áreas remotas. Contudo, a Human Rights Watch documentou graves omissões, como a falta de autópsias, em investigações de mortes ocorridas nas cidades, não muito longe das delegacias de polícia.
 
As investigações sobre as ameaças de morte não são diferentes. Em alguns locais, a polícia recusa-se, inclusive, a registar as denúncias de ameaças, segundo a investigação da Human Rights Watch.

Em pelo menos 19 dos 28 assassinatos examinados, ameaças contra as vítimas ou contra as suas comunidades antecederam os ataques, mas não foi tomada nenhuma medida.
 
Desde 2004, o Brasil tem um programa para proteger os defensores dos Direitos Humanos, incluindo defensores ambientais, que, em teoria, deviam ser capazes de fornecer proteção aos defensores florestais que recebem ameaças de morte.

Atualmente, mais de 400 pessoas estão matriculadas no programa em todo o país, a maioria delas defensoras dos direitos indígenas, direitos à terra ou ao meio ambiente.
 
O programa visa fornecer uma série de medidas de proteção para os inscritos, como visitas da equipa do programa aos defensores, manutenção do contato telefónico, visibilidade do trabalho e mobilização de outras instituições para fornecer proteção.
 
No entanto, oficiais do Governo e defensores florestais entrevistados pela Human Rights Watch concordaram por unanimidade que, na prática, o programa oferece pouca proteção significativa. Geralmente, não envolve nada além de verificações ocasionais por telefone.
 
No Pará, o estado com o maior número relatado de homicídios em conflitos por terras e recursos, os promotores processaram o Governo estadual e federal em 2015 depois de descobrir que o programa federal para proteger os defensores dos Direitos Humanos era “completamente ineficaz”.
Políticas anti-ambientais de Bolsonaro
Por mais de uma década, a preservação da floresta amazónica foi o compromisso central do país na tomada de medidas para lutar contra o aquecimento global.
 
Em 2016, sob o Acordo de Paris para as Mudanças Climáticas, o Brasil comprometeu-se a eliminar a desflorestação ilegal na Amazónia - que representa 90% de toda a desflorestação – até 2030.
 
Entre 2004 e 2012, o país reduziu a desflorestação geral na Amazónia em mais de 80%, passando de quase 28.000 quilómetros quadrados de floresta destruída por ano para menos de 4.600.

Mas a desflorestação começou a subir em 2012 e, em 2018, atingiu 7.500 quilómetros quadrados. Espera-se que esse total seja significativamente maior em 2019.
 
Para que o Brasil cumpra a data estipulada no Acordo de Paris, terá que restringir os grupos criminosos que estão a alimentar grande parte da desflorestação. E isso, por sua vez, exigirá proteger as pessoas que estão a lutar pela defesa da floresta.
 
Contudo, salienta o relatório da Human Rights Waths, Jair Bolsonaro tem mostrado pouco interesse em fazê-lo ao longo destes primeiros meses no cargo. Pelo contrário, o Presidente reduziu a aplicação das leis ambientais, enfraqueceu as agências ambientais federais e criticou duramente as organizações e indivíduos que trabalham para preservar a floresta tropical, destaca a organização.
 
De acordo com as autoridades ambientais e residentes locais, as suas palavras e ações deram "luz verde" às redes criminosas envolvidas na extração ilegal de madeira. Bolsonaro está a colocar em risco a Amazónia e os seus habitantes, prejudicando a capacidade do Brasil em cumprir o prazo do Acordo de Paris, lê-se ainda no documento.
 
A redução da fiscalização ambiental posta em prática pelo presidente incentiva a extração ilegal de madeira, e resulta numa maior pressão sobre a população local para assumir um papel mais ativo na defesa das florestas, por conta própria e apesar dos riscos de represálias.
 
Nos primeiros oito meses do Governo Bolsonaro, a desflorestação quase duplicou em comparação com o mesmo período de 2018, segundo dados oficiais preliminares. Em agosto de 2019, incêndios ligados à desflorestação na Amazónia ocorreram numa escala que não era vista desde 2010.
Impactos que ultrapassam fronteiras
“O impacto dos ataques aos defensores da floresta do Brasil estende-se muito além da Amazónia”, afirmou Daniel Wilkinson.
 
Os riscos do confronto entre os defensores da floresta e as redes criminosas não só se estendem além da Amazónia, como também, além das fronteiras do Brasil.
 
Sendo a maior floresta tropical do mundo, a Amazónia desempenha um papel vital no abrandamento das mudanças climáticas, absorvendo e armazenando dióxido de carbono.

Quando cortada ou queimada, a floresta não deixa apenas de cumprir essa função, como também libera de volta para a atmosfera o dióxido de carbono que tinha armazenado anteriormente.
 
“Enquanto o Brasil não adotar medidas urgentes contra a violência que facilita a extração ilegal da madeira, a destruição da maior floresta tropical do mundo continuará desenfreada”, concluiu Wilkinson.
 
No dia 23 de setembro de 2019, a Organização das Nações Unidas realizará uma cimeira em Nova Iorque para discutir os esforços globais para atenuar as mudanças climáticas.

Segundo dados do Governo, a desflorestação é responsável por quase metade das emissões de gases de efeito estufa do Brasil.
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