Relatório da ONU. "Oceano mais quente, mais ácido e menos produtivo"

por RTP
A temperatura global já "atingiu 1.ºC acima do nível pré-industrial", alertam os cientistas Reuters

O Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC), criado pelas Nações Unidas, apresentou esta quarta-feira um relatório dedicado aos efeitos das alterações climáticas nos oceanos e nas massas de gelo permanentes da Terra. A devastação dos mares e das regiões geladas devido às alterações climáticas é o grande problema apontado no documento.

É urgente priorizar "ações oportunas, ambiciosas e coordenadas" de forma a enfrentar estas mudanças "sem precedentes e duradouras" nos oceanos e na criosfera – regiões cobertas por gelo e neve permanentes e que constituem dez por cento da superfície do planeta –, alerta o relatório.

Durante este século, os oceanos poderão vir a sofrer alterações "sem precedentes", com temperaturas mais altas, água mais ácida, menos oxigénio e condições alteradas de produção de recursos.

O gelo das regiões geladas, como o Ártico por exemplo, estão a derreter a um ritmo nunca antes registado e, em consequência, o nível dos oceanos está a subir, pondo em causa a vida de mais de mil milhões de pessoas, advertem os cientistas no documento.

O IPCC estabelece que "o oceano e a criosfera acolhem habitats únicos e estão ligados a outros componentes do sistema climático através de trocas globais de água, energia e carbono".

A verdade é que cerca de "670 milhões de pessoas nas regiões de alta montanha e 680 milhões de pessoas nas zonas costeiras mais baixas dependem diretamente destes sistemas". Por exemplo, pelo menos "quatro milhões de pessoas vivem permanentemente na região do Ártico" e serão afetadas com o degelo e a subida do nível do mar.

Este relatório destaca, ainda, os benefícios de uma adaptação "ambiciosa e eficaz para o desenvolvimento sustentável" e os "custos e riscos crescentes de uma ação adiada".
Mais 1ºC, mais consequências
A temperatura global já "atingiu 1.ºC acima do nível pré-industrial", alertam os cientistas. Este aquecimento global deve-se às "emissões passadas e atuais de gases de efeito de estufa" e já há provas "esmagadoras de que isso está a provocar profundas consequências para os ecossistemas e as pessoas".

Cristina Liz, Vanessa Brízido - RTP

Os cientistas do painel constataram que os oceanos têm vindo a aumentar de temperatura desde 1970, absorvendo "mais de 90 por cento do calor em excesso no sistema climático", com ondas de calor marinho duas vezes mais frequentes desde 1982.

O relatório é claro: "O oceano está mais quente, mais ácido e menos produtivo".

"Ao absorver mais dióxido de carbono, o oceano sofreu um aumento da acidez à superfície", esclarecem os cientistas, considerando muito provável que 20 a 30 por cento do dióxido de carbono (CO2) emitido pela atividade humana desde 1980 foi parar ao oceano e provocou uma perda de oxigénio desde a superfície marinha até aos mil metros de profundidade.

O problema é que com o degelo e a diminuição permanente das massas geladas ameaça libertar ainda mais dióxido de carbono e, assim, acelerar ainda mais esta devastação dos oceanos e da criosfera.

O IPCC diz que esta subida do nível médio global dos oceanos foi acentuada no período de 2006 a 2015 em relação ao último século e a um ritmo de 3,6 milímetros por ano, atribuindo-a principalmente às massas de gelo e glaciares que derreteram.

Na Antártida, as perdas de gelo "triplicaram no período entre 2007 e 2016 em relação ao período 1997-2006", lê-se no relatório em que se conclui com "confiança alta" que "a causa dominante da subida do nível médio do mar desde 1970 tem origem humana".

Os cientistas prevêem que a subida do nível dos oceanos atinja 15 milímetros por ano em 2100 e "vários centímetros por ano no século XXII". No entanto, não descartam a possibilidade de a subida do mar ser uma realidade anual ainda neste século.

"As rápidas mudanças no oceano e as partes congeladas do nosso planeta estão a forçar as pessoas das cidades costeiras e das remotas comunidades do Ártico a alterar fundamentalmente os seus hábitos de vida", disse Ko Barret, vice-presidente do IPCC.

"Ao entendermos as causas destas mudanças e os impactos resultantes destas e avaliando as opções disponíveis, podemos fortalecer a nossa capacidade de adaptação", disse Barret.

Os cientistas do painel dizem que uma "redução urgente das emissões de gases de efeito estufa" pode limitar e desacelerar as mudanças nos oceanos e na criosfera, assim como possivelmente preservar "os ecossistemas e os meios de subsistência" que dependem dos oceanos.
Causas humanas levam a perturbações ecológicas
O relatório identifica, entre as consequências, "alterações nas atividades sazonais e na abundância e distribuição de espécies animais e vegetais importantes ecológica, cultural e economicamente", com "perturbações ecológicas e no funcionamento dos ecossistemas" e aumento do risco de extinção de espécies adaptadas a temperaturas baixas.

A perda das massas de gelo deverá "afetar recursos aquáticos e o seu uso", com a libertação de metais como o mercúrio na água dos rios, consequências para a saúde e na agricultura de zonas no sopé de montanhas, com "alterações nas cheias, deslizamentos de terras, avalanches e desestabilização dos solos", com efeitos nas atividades humanas, da agricultura ao turismo.

No último século, cerca de 50 por cento das zonas húmidas costeiras "perderam-se em resultado da pressão humana, subida do nível do mar, aquecimento e eventos climáticos extremos", perdendo-se "ecossistemas vegetais costeiros que protegem o litoral de tempestades e da erosão" e que absorviam dióxido de carbono, refere também o documento.

Espera-se que os glaciares continuem a derreter nas próximas décadas.

"As massas gelo da Gronelândia e Antártida deverão continuar a derreter a um ritmo crescente durante o século XXI e mais além", se continuarem a aumentar as emissões de gases com efeito de estufa.

"O mar aberto, o Ártico, a Antártica e as montanhas altas podem parecer distantes para muitas pessoas", disse Hoesung Lee, presidente do IPCC. "Mas nós dependemos deles e somos influenciados por eles direta e indiretamente de várias maneiras - pelo clima e pelas temperaturas, pela comida e pela água, pela energia, comércio, transporte, recreação e turismo, pela saúde e bem-estar, pela cultura e pela identidade".

No entanto, o especialista explica que "se reduzirmos as emissões bruscamente, as consequências para as pessoas e para os seus meios de subsistência ainda serão um desafio, mas potencialmente mais gerenciáveis". "Aumentamos a nossa capacidade de resiliência e teremos mais benefícios para o desenvolvimento sustentável", esclarece Lee.
Ainda há solução?

Algumas medidas de mitigação dos efeitos descritos, "ambiciosas e de adaptação eficaz", são a única maneira de contrariar "os custos e riscos crescentes" de continuar a adiar ações concretas para limitar o aquecimento global.

"As pessoas mais expostas e vulneráveis são muitas vezes as que têm menos capacidade para responder" e muitas iniciativas ao nível governamental (como proteção de áreas marinhas ou sistemas de gestão de águas) estão "demasiado fragmentados em muitos setores administrativos" para serem eficazes face "aos riscos crescentes provocados pelas alterações climáticas", aponta o documento.

Entre as medidas apontadas como positivas, o IPCC indica a recuperação de ecossistemas vegetais costeiros, que poderão absorver cerca de "0,5 por cento das emissões anuais atuais" e emitir menos dióxido de carbono, proteger o litoral de tempestades, aumentar a qualidade da água e trazer benefício à biodiversidade.

Embora haja muitas "incertezas sobre o ritmo e dimensão da subida do nível dos oceanos depois de 2050", as zonas costeiras e as suas populações podem ainda benefeciar se houver um planeamento atempado, com "respostas flexíveis" que possam ir sendo adaptadas à realidade, diz o IPCC, admitindo medidas que podem ir de sistemas de alerta de cheia à relocalização de pessoas antes ou depois de desastres.

Os cientistas consideram que a redução "urgente e ambiciosa" de emissões é fundamental e defendem a mesma ambição para medidas de adaptação às alterações climáticas.

"Educação e literacia climática, monitorização e previsão, uso de todas as fontes de conhecimento disponíveis, partilha de dados, informação e conhecimento, financiamento e apoio institucional" são essenciais, acrescentam.

O relatório do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas compila o trabalho de mais de 100 cientistas de 30 países e revela a avaliação das perdas de gelo e da subida do nível dos oceanos em ecossistemas oceânicos, costeiros, polares e montanhosos, assim como nas comunidades humanas que deles dependem e que excedem os mil milhões de pessoas.
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