Carolina Jordão, internada vários meses sem necessidade RTP

Linha da Frente. Os dias em suspenso

Portugal continua a ter, diariamente, uma despesa indevida com internamentos inapropriados. Os casos sociais continuam a ser uma realidade difícil para os hospitais portugueses. São centenas em todo o país e acontecem por razões diversas: ou por isolamento, ou por abandono, ou até porque as famílias, querendo, não têm condições para garantir os cuidados necessários.

Os tempos de espera por uma solução de cariz social chegam a superar um ano. Das unidades de saúde, ouve-se a crítica à falta de respostas sociais de um país que, em 2050, será o mais envelhecido da europa.

Além dos casos sociais, há camas ocupadas com pessoas que esperam por uma vaga na Rede Nacional de Cuidados Continuados, onde ainda faltam cerca de cinco mil camas no país.
"Se chegar aos 78, chego, se não chegar, já passei a minha mocidade"
Está sentada à mesa de cabeceira que lhe calhou na sorte. Vai trocando palavras com a colega de quarto enquanto gasta as horas entre linhas e agulhas. Carolina Jordão aprendeu a bordar nos tempos da juventude quando a velhice ainda nem sequer lhe passava pelas ideias. Desabafa que, ao menos assim, está distraída: “Vem o natal, se eu quiser dar uma prenda sem estar a gastar dinheiro, já aqui tenho para dar!”.

E o pano ganha forma.

Aos 77 anos, uma crise de saúde levou-a a um hospital onde ficou internada. Teve alta clínica pouco tempo depois, mas continuou a viver num hospital meses a fio.

“Nunca pensei muito. Ia andando e ia vendo. Era um dia de cada vez e eu não me estava a atrapalhar. A pouco e pouco, a pouco a pouco cheguei aos 77 anos. Agora, se chegar aos 78, chego, se não chegar, já passei a minha mocidade. Já estou preparada para tudo!”, conta Carolina.
A realidade que não muda de ano para ano
Em janeiro, os dados cedidos pelas Administrações Regionais de Saúde do país à RTP contabilizavam mais de 600 casos sociais - pessoas que tendo alta clínica continuaram a viver num hospital por falta de respostas na comunidade.

Maria João Correia é a diretora do Serviço Social do Hospital de Penafiel e lida diariamente com esta realidade, na procura por soluções.

“É de todo impensável e é de todo nefasto que um doente permaneça tanto tempo num hospital de agudos por uma resposta que é meramente social. Se um doente viver só, não tem filhos, chega ao hospital e não pode regressar ao domicílio, à partida tem mesmo de ficar. Nós não devolvemos doentes à comunidade sem estar em segurança. E já sabemos que a saída do doente em termos efetivos vai ser longa, para cima de um ano", afirma.

O problema não escolhe hospitais, é comum ao país todo. “A urgência é efetivamente um local de fácil acesso. Quando se diz pode ter alta, as famílias respondem muitas vezes não sou capaz, por este motivo ou por aquele, e os doentes acabam por ficar, como é óbvio”. A observação é de Graça Barros, a diretora do Serviço Social do Hospital de Gaia.

“Estamos a confinar uma pessoa a uma enfermaria com um pijama vestido durante vários meses, o que eu não considero digno”, lamenta.
A radiografia aos hospitais portugueses
A 18 de fevereiro, a Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares fazia um levantamento, junto dos hospitais, do número de internamentos indevidos. A radiografia apontava para 1551 hospitalizações desnecessárias. São casos que, nas contas dos administradores, provocaram uma despesa inapropriada de quase 40 milhões de euros.

Além disso, esta problemática traduz-se em cirurgias adiadas e risco para os doentes, como refere Vítor Paixão Dias, diretor do Serviço de Medicina Interna do Hospital de Gaia: “Representa insegurança para o doente e representa outros doentes que podiam estar a ocupar aquelas camas e estão indevidamente internados no serviço de urgência, em macas”.

Alexandre Lourenço, presidente da APAH, diz que não são precisas mais camas: “Se fossem criadas mais camas, estes casos continuariam a arrastar-se dentro dos hospitais. Precisamos é de mais respostas fora dos hospitais”.
A pandemia agravou a realidade
A pandemia obrigou a ajustes nos circuitos hospitalares. No Hospital de S. João, no Porto, a Segurança Social resolveu situações que se arrastavam desde 2017. Mas nem isso significa que o problema tenha sido eliminado. O desconfinamento veio agravar os números, de novo.

“As instituições locais estão fechadas, os centros de dia estão fechados, onde é que as pessoas recorrem? Recorrem aos hospitais, que são uma porta aberta e muitas das situações chegam aqui numa situação de grande fragilidade”, diz Alexandra Ferreira, diretora do Serviço Social do Hospital de S. João.

Por estes dias, há mais de 30 pessoas internadas que já tiveram alta social. “As respostas sociais de hoje são desadequadas. A pandemia veio pôr a nu as fragilidades do sistema. Geralmente, pensam o envelhecimento como objeto último da institucionalização e não passa por aí”, refere.
Os cuidados continuados nos dias de hoje
Não são só os casos sociais a ocupar camas hospitalares indevidamente. Há também quem aguarde num hospital por uma vaga na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI). E os tempos de espera chegam a meio ano, às vezes mais.

“Os nossos dados internos de 2019 indicam que morreram 66 pessoas enquanto esperavam por um lugar na Rede, provavelmente devido a alguma agudização”, diz Luís Baixinho, da Equipa de Gestão de Altas do Hospital de Évora.


José Cid da Silva, à espera de vaga na Rede Nacional de Cuidados Contiuados Integrados, no Hospital de Évora

A RNCCI nasceu em 2006 com o propósito de ajudar à reabilitação de todos os utentes que já não precisam de cuidados agudos num hospital. À data, foram identificadas 14 mil camas para as necessidades do país, mas passados 14 anos ainda só estão disponíveis cerca de 9400, o que tem implicação direta nas camas dos hospitais.

Em setembro, segundo os dados a que a RTP teve acesso, mais de 500 das 1500 pessoas que esperavam por tratamento na Rede, estavam hospitalizadas.

A coordenadora da RNCCI, Purificação Gandra, explica que há trabalho a ser feito, mas “por muito que a gente queira não se conseguem abrir unidades num estalar de dedos nos sítios onde mais precisamos. Muitas das vezes, as ofertas nem existem e os promotores ainda vão construir. Ora, as construções demoram dois, três anos”.

Pode ver ou rever aqui a reportagem Os dias em suspenso, emitida no programa Linha da Frente.